11 agosto 2014

fernando pessoa / a minha vida é um barco abandonado



A minha vida é um barco abandonado
Infiel, no ermo porto, ao seu destino.
Por que não ergue ferro e segue o atino
De navegar, casado com o seu fado?

Ah! falta quem o lance ao mar, e alado
Torne seu vulto em velas; peregrino
Frescor de afastamento, no divino
Amplexo da manhã, puro e salgado.

Morto corpo da acção sem vontade
Que o viva, vulto estéril de viver,
Boiando à tona inútil da saudade.

Os limos esverdeiam tua quilha,
O vento embala-te sem te mover,
E é para além do mar a ansiada Ilha.



fernando pessoa





10 agosto 2014

archibald macleish / ars poetica



Um poema deve ser palpável e mudo
como o fruto em globo

Calado
como antigos medalhões nos dedos

Silente como a pedra gasta por mangas
em umbrais onde o musgo cresceu -

Um poema deve ser sem palavras
como o voo das aves

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a lua sobe

Largando, como a lua solta
ramo a ramo as árvores presas na noite,

largando, como a luz atrás do inverno larga
memória a memória, o espírito -

Um poema deve ser imóvel no tempo
como a  lua sobe

Um poema deve ser igual a -
não «verdadeiro»

Porque toda a história da dor
uma porta vazia e uma folha de plátano

Porque o amor
as ervas que se curvam e duas luzes acima do mar

Um poema não deve significar
mas ser.



archibald macleish
estados unidos
1892





09 agosto 2014

jaime salazar sampaio / instantâneo na cidade tranquila



Com vento favorável, mesmo junto aos edifícios dos bancos e dos grandes escritórios, pode sentir-se o cheiro do mar.

Vem do cais, não é absoluto nem abafa as buzinas dos carros. Não leva o perdão aos sonhos dos homens curvados nos arquivos, nem é mesmo vigoroso como pensar de repente na morte, pensar na morte e trincar uma laranja.

Mas com vento favorável boa vontade e raiva pode sentir-se, chega a sentir-se, o cheiro do mar.



jaime salazar sampaio
poemas propostos
1954



08 agosto 2014

liberto cruz / a exacta viagem (fragmento inicial)



                                A Urbano Tavares Rodrigues e
                                           David Mourão-Ferreira


Falo de um tempo incolor,
onde a luz brilha como um aço esquecido.
Aqui um gesto limita carícias como vidro esmagado,
e, do que sabemos, só é nossa esta sagrada flor
que não desvendamos.
Prodigiosos os insectos,
cujo vocabulário é tão reduzido e ondulado
e sentem a morte
como os pássaros escuros e sem destino.
Sábios, brilhantes e frios,
os dedos que nos estendem
trazem eternidade de gargantas falsas
onde um reino é sempre dourado,
mas nunca, nunca chega a nossa voz
de juncos e ausência.

Onde estás primavera de vinho e loucura
que não nos restituis as acácias
e os peixes das ervas pequenas e sadias?

Onde se esconde teu coração adolescente,
teu riso de neve e seda
em perene sigilo?

Onde colher os gestos da lua
se nos cortaram as mãos
e a catedral de nossa esperança
agoniza todas as noites,
entre estátuas e estátuas?

Não; não nos falem de palavras
compondo bênçãos
e escorrendo rios de alegria e paz.
Não é verdade que temos ossos e músculos
e o sangue dói quando nos apertam a cabeça?
… …... … … … … … … … … … … … … … …




liberto cruz
itinerário
1962



07 agosto 2014

ângelo de lima / olhos de lobas



Teus olhos lembram círios
Acesos n'um cemitério...
Dr. Rogério de Barros

Têm um fulgor estranho singular
Os teus olhos febris... Incendiados!...

Como os Clarões Finais... - Exaustinados
Dos restos dos archotes, desdeixados...
- Nas criptas d'um Jazigo Tumular!...

- Como a Luz que na Noute Misteriosa
- Fantástica - Fulgisse nas Ogivas
Das Janelas de Estranho Mausoléu!...

- Mausoléu, das Saudades do Ideal!...

- Oh Saudades... Oh Luz Transcendental!
- Oh memórias saudosas do Ido ao Céu!...

- Oh Pérpetuas Febris!... - Oh Sempre Vivas!...
- Oh Luz do Olhar das Lobas Amorosas!...


ângelo de lima
poesias completas
editorial inova
1971


06 agosto 2014

mário cesariny / o moço pastor que ali vem cantar




III

o moço pastor que ali vem cantar
a sombra que deu
aos montes que têm o rio a passar
outro azul no céu

vê perto seu canto que ouvido se esconde
e é o que ele sabe
mas longe na noite sem fim lhe responde
a mesma verdade

que é a estação fria como está nos ramos
e na lua-cheia
pequeno cordeiro que há anos e anos
ele pastoreia



mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




05 agosto 2014

rené char / o inofensivo


Choro quando o sol se põe porque ele te esconde da minha vista e porque não sei entender-me com os seus rivais nocturnos. Embora ele esteja baixo e agora sem febre, é impossível contrariar o seu declínio, suspender a sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua desfolhagem, arrancar ainda algum desejo à sua claridade moribunda. A sua partida funde-te com a sua obscuridade, como a lama do leito se dissolve na água da torrente para além do entulho das margens destruídas. Dureza e moleza de origens diferentes têm então efeitos semelhantes. Cesso de receber o hino da tua palavra; subitamente já não te vejo inteira ao meu lado; não é o fuso nervoso do teu pulso que eu seguro na mão, mas o ramo oco de uma qualquer árvore já morta e gasta. Só se dá nome ao arrepio, e a mais nada. É de noite. Os artifícios que se acendem acham-me cego.

De verdade só chorei uma única vez. O sol ao desaparecer tinha cortado o teu rosto. A tua cabeça rolara na fossa do céu e eu já não acreditava no futuro.

Qual é o homem da manhã e qual o homem das trevas?




rené char
este fanático das nuvens
poemas dos dois anos
palavra em arquipélago (1952-60)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995



04 agosto 2014

jorge de sena / felicidade



A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.



jorge de sena
perseguição : poemas
cadernos de poesia
1942



03 agosto 2014

william carlos williams / a acácia em flor



Por
entre
verdes

duros
velhos
claros

quebrados
ramos
outro

branco
doce
Maio

vem


william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993


02 agosto 2014

daniel filipe / desnecessária explicação



Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?


daniel filipe
marinheiro em terra
1949




31 julho 2014

samuel beckett / elas vêm



elas vêm
outras e as mesmas
com cada uma é diferente e é o mesmo
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é a mesma

1937
  



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003




30 julho 2014

konstandinos kavafis / che fece….il gran rifiuto



A algumas pessoas um dia cai
em que o grande Sim ou o grande Não sobrevém
dizer. Logo surge ao de cima a que tem
pronto dentro de si o Sim e ao dizê-lo vai

além da sua honra e do que está convencida.
A que negou não se arrepende. De novo interrogada
Voltaria a dizer não. Mas tem-na derrotada
Aquele não – o correcto – toda a sua vida.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



29 julho 2014

arsenii tarkovskii / tive em miúdo uma doença



Tive em miúdo uma doença
E fome e medo. Grossas escamas soltando-se
Dos lábios, que eu humedecia. Nunca esqueci
Esse sabor, salgado e frio.
Mas não parava de andar, andar, andar.
Sentava-me nos degraus do alpendre ao sol,
Caminhava no meu modo leve como se dançasse
A melodia do caçador de ratos, no rio. Sentava-me
Ao sol nos degraus, a tiritar,
E a mãe vinha ali, acenando, parecia
Tão perto, e eu sem poder tocar-lhe:
Movo-me para ela, que sete degraus acima
Acena; movo-me para ela, que acena
Sete degraus acima.


arsenii tarkovskii
8 ícones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987