13 dezembro 2013

rui knopfli / mania do suicídio



Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.


rui knopfli
memória consentida : 20 anos de poesia 1959-1979
imp. nac. casa da moeda
1982



12 dezembro 2013

manuel gusmão / entre a praia e o jardim



1
entre a praia e o jardim
as margens da luz:
praias de longa duração fluindo
em torno de um jardim instantâneo;
jardins que vão crescendo durante séculos
até um relâmpago de praia onde
o teu corpo em flashes brancos
se incendeia branco;
o espanto que a
ssombra o espanto, nas fronteiras
perturbadas, o fulgurante
mar, a massa de árvores
na montanha.

  
manuel gusmão
as escadas não têm degraus nr. 3
livros cotovia
março de 1990



11 dezembro 2013

fernando pessoa / livro do desassossego



Quem, como eu, sofre porque uma nuvem passa diante do sol,
como não há-de sofrer no escuro do dia
sempre encoberto da sua vida?

O meu isolamento não é a busca da felicidade,
que não tenho alma para conseguir;
nem de tranquilidade, que ninguém obtém
senão quando nunca a perder,
mas de sono, de apagamento, de renúncia pequena.

As quatro paredes do meu quarto pobre são-me,
ao mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão.
As minhas horas mais felizes são aquelas em que não penso nada,
não quero nada, não sonho sequer,
perdido num torpor de mero musgo
que crescesse na superfície da vida.
Gozo sem amargor a consciência absurda de não ser nada
ante o sabor da morte e do apagamento.


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares
ática
1982





10 dezembro 2013

antónio franco alexandre / caminha pelo sangue...



caminha pelo sangue, na pele
rugosa do amanhecer,
a tão pequena tosse do outro
lado das palavras: como se

se dividissem os sentidos,
a visão, o tacto animal,
o veneno riscado, arrancado
às paredes da luz,

e sobre o flanco abrisse
uma doença uma razão
meticulosa de existir,

um sofrimento a cada
instante mais veloz, mais ágil,
uma secreta ausência perdoada.



antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983


09 dezembro 2013

ana hatherly / que é voar?



Que é voar?
É só subir no ar,
levantar da terra o corpo,os pés?
Isso é que é voar?
Não.

Voar é libertar-me,
é parar no espaço inconsistente
é ser livre, leve, independente
é ter a alma separada de toda a existência
é não viver senão em não -vivência

E isso é voar?
Não.

Voar é humano
é transitório, momentâneo...

Aquele que voa tem de poisar em algum lugar:
isso é partir
e não voltar.



ana hatherly



08 dezembro 2013

alberto caeiro / num meio-dia de primavera



Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?
  



alberto caeiro 



07 dezembro 2013

andréas empeiríkos / aves do prut



10
Vou apanhar na minha rede a barca
Que me levará hoje para junto de ti.

13
Há flores que se parecem com mãos
Os seus dedos tacteiam e soltam perfume.

16
As minhas pálpebras são cortinas transparentes
Abro-as e vejo à minha frente o que calha
Fecho-as e vejo à minha frente os meus desejos.



andréas empeiríkos
trad. manuel resende




06 dezembro 2013

antónio barahona da fonseca / a saque e a sangue



Na minha cidade a saque e a sangue
um grilo sacana canta e não canta
um grilo couraçado, desesperado
dentro da gaiola, pequena garganta

*

Conheço estas vozes que cheiram a tabaço
e dizem e dizem a saque e a sangue
a missão do poeta na miséria dos tempos:
Construir uma Rosa, suicidar-se estanque

ou viver pesaroso, fumador de navios,
ou vampiro feliz na encruzilhada dos rios


antónio barahona  da fonseca
grifo
1970





05 dezembro 2013

maria teresa horta / despedida



Amor mais do que
amor
vontade ou rasto

ainda mais que vício
espanto ou morte

tão cedo suicídio
ou o teu corpo

amor mais do que
dor
prazer ou tacto

  
maria teresa horta
amor habitado
1963



04 dezembro 2013

m. s. lourenço / alfa


I

flutuo
no ar
esguelho sobre um dos lados
oblíqua em baixo uma superfície
lateral uma paisagem aberta
interior exterior
fronteira a separá-las
no centro palavras desligadas
juntas às vezes
a escorregar no sentido a frase
deslisa num vento
um remoinho no nó sintáctico
(voltar com barras a ligá-las!)
corpos cá dentro chove
alheios olham a corrente

troncos de árvore lamacenta
desço até terra firme
sem molde orgânica ou padrão
ou motus animi continuus
as pás rodam

ou esquema nublado de uma rima
um metro regular
a frase solta aponta para fora
move-se o verbo
sem avistar as outras partes

toco o chão pulveriza-se o sentido
poeira e chuva invadem o meu casaco
saltam as cabras pobre poeta
destruo os telhados com o vento
fugiram há muito alguns traços

escondidos para lá da aldeia
levanto procuro leste
sem sentido ainda
a proposição no seu conjunto
ocasional ao fundo um arco-íris


m. s. lourenço
arte combinatória
1971



03 dezembro 2013

àlex susanna / programa dos festejos



Fechemo-nos em casa
desliguemos o telefone,
destruamos o império
da televisão
jantemos perto da lareira,
ouvindo, calando;
olhamos os quadros
que souberam acompanhar-nos,
ouvimos também alguma
música esquecida,
e então, lentamente,
podemos adormecer
nos braços um do outro
que um mesmo sonho
nos leve para longe:
que nunca nada nem ninguém
ouse interferir                           
nesta nossa frágil
mas plena felicidade:
construamos com ela                                                           
um bastião inexpugnável.


àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves




02 dezembro 2013

gil t. sousa / luto



22

atravessava a morte
com a lentidão rigorosa dos amantes

e voltava
voltava sempre

trazia em pedaços de papel
coisas cada vez maiores

que já só podia arrumar no coração


gil t. sousa
água forte
2005



01 dezembro 2013

al berto / sida



"aqueles que têm nome e nos telefonam
um dia emagrecem - partem
deixam-nos dobrados ao abandono
no interior duma dor inútil muda
e voraz

arquivámos o amor no abismo do tempo
e para lá da pele negra do desgosto
pressentimos vivo
o passageiro ardente das areias - o viajante
que irradia um cheiro a violetas nocturnas

acendemos então uma labareda nos dedos
acordamos trémulos confusos - a mão queimada
junto ao coração

e mais nada se move na centrifugação
dos segundos - tudo nos falta

nem a vida nem o que dela resta nos consola
e a ausência fulgura na aurora das manhãs
e com o rosto ainda sujo de sono ouvimos
o rumor do corpo a encher-se de mágoa

assim guardamos as nuvens breves os gestos
os invernos o repouso a sonolência
o vento
arrastando para longe as imagens difusas
daqueles que amámos mas não voltaram
a telefonar"


al berto
horto de  incêndio
assírio & alvim
1997