11 agosto 2012

stéphane mallarmé / brisa marinha




Triste carne, ai de mim! Já li os livros todos.
Fugir! Longe fugir! As aves sinto a modos
De ser ébrias de espuma entre o mistério e os céus!
Nada, nem os jardins espelhados nos meus
Olhos, o coração retém quase afogado,
Ó noites! nem da lâmpada a ausente claridade
No branco do papel que o vazio rejeita
E nem a jovem mãe que ao peito o filho aleita.
Hei-de partir! Veleiro a mastrear, tu, larga
As amarras, demanda outra exótica plaga!
Um Tédio, desolado por esperanças cruéis,
Crê ainda nos lenços molhados dos adeus!
E talvez que esses mastros atraindo os presságios
Sejam dos que o tufão verga sobre os naufrágios
Perdidos, já sem mastros, em estéreis ilhéus...
Mas os marujos cantam, ouve, coração meu!




stéphane mallarmé
(1842-1898)
poemas de mallarmé, lidos por fernando pessoa
tradução de josé augusto seabra
poemário
assírio & alvim
2000


10 agosto 2012

enrique garcía-máiquez / as armas e as letras





Aqui onde me vêem
contar a minha experiência
sou um poeta compro-
metido até às sobrancelhas
na campanha audaz
de melhorar a terra.
E, diligente, meto
─  com vontade de luta ─
mãos à obra
no que encontro ao pé.
A batalha mais dura
trava-se-me na cabeça,
e tenho que esforçar-me
─  forçar-me ─  nesta guerra
onde o que perde, ganha
e o que ganha se rende.
A luta é sem quartel,
sem mortos, sem violência,
sem inimigos, sem
armas além das letras…





enrique garcía-máiquez
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



09 agosto 2012

joan-ives casanova / que dizem as mãos erguidas…





que dizem as mãos erguidas como para sair para as ruas
onde se nos torna difícil caminhar no côncavo da história
sem território sem paz e sem pátria porque assim o queremos
para rasgar com tristeza as cores do vento e do desejo

vejo-me reflectido em outras mãos erguidas na claridade do tempo
através da sombra negra que já não pode enegrecer sem segredo
sem atalho sem cortar o pão que se come fresco
o pão pousado na mesa azul horas docemente concedidas
 
não se pensa em escrever a história muito menos falar dela
apenas deixar-se levar ao signo pela chave do tempo
e à conversão poderosa que faz do dia o sentido possível
e pode-se não acreditar em nada salvo na nudez das palmas descobertas
quando se olha a luz das nossas mãos  à beira-mar




joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga



08 agosto 2012

josé ángel valente / consinto




Devo morrer. E, contudo, nada
morre, porque nada
tem fé suficiente
para poder morrer.

Não morre o dia,
passa;
nem uma rosa,
apaga-se;
resvala o sol,
não morre.

Somente eu, que toquei
o sol, a rosa, o dia,
e acreditei,
sou capaz de morrer.




josé ángel valente
tradução de josé bento



07 agosto 2012

daniel pennac / como um romance





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A intimidade perdida…

Neste princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos, descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.

O amor ganhava um novo rosto.

E era gratuito.


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Gratuito. Pelo menos era assim que ele o entendia. Um presente. Um momento fora de todos os momentos. Qualquer que fossem as circunstâncias. A história nocturna aligeirava-lhe o peso do dia. Largavam-se as amarras. Ia com o vento, levíssimo, o vento que era a nossa voz.

Não lhe pedíamos que pagasse a viagem, não lhe exigíamos nada, nem um centavo, não lhe pedíamos a menor contrapartida. Nem sequer era uma recompensa. (Ai as recompensas… a necessidade de alguém se mostrar recompensado!) No nosso caso, tudo era gratuito.

A gratuidade é a única moeda da arte.
 






daniel pennacc
como um romance
trad. francisco paiva boléo
edições asa
1994






06 agosto 2012

marguerite yourcenar / nunca serei vencida





Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.

Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.

Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.





marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995



05 agosto 2012

eloy sánchez rosillo / supõe que ainda é agosto



                      “embora o ser amado esteja ausente, perto estão suas imagens
                               e seu doce nome ressoa em nossos ouvidos.”

                                Lucrécio



      Supõe que ainda é Agosto e não estás longe
desta cidade que ainda guarda
os últimos vestígios daquela altiva chama do verão
que lentamente foi, como tudo, morrendo;     
imagina que ainda estás aqui, comigo,
na paz desta casa que a luz torna formosa
e busca na memória o esplendor dourado
dos dias perfeitos que nela — porque assim
o desejou algum deus de olhar propício —
vivemos juntos, alheios a tudo o que não fosse
nossa própria alegria de estar juntos.

      Recorda.
                      Olha. Olha essas gloriosas
manhãs: acordaste há momentos,
e esperas em silêncio que eu abra os olhos
para me dares os bons-dias e dizeres-me — hoje também —
que és feliz.
          E apontas-me depois
esse raio de sol que entra pela janela
e aqui, junto à cama, no chão, desenha
um doce charco de ouro.
                                        Não deixes que se apaguem
de tua alma os risos desse tempo,
as palavras ardentes que soavam
como um cristal finíssimo e enchiam de música
as horas do amor: o espaço inocente
da paixão satisfeita nas radiosas noites
que nossos corpos conquistaram.

                                        Contempla estas imagens,
a esquece-te desse lugar em que agora
para teu desgosto e meu desgosto habitas:
ruas cheias de outono, gente que desconhece
nossa história, terras que não são tuas,
e esse rio que em nada se parece
a este nosso daqui, que sob o sol corre
através dos hortos.

                                Oxalá sempre leves
contigo, a cada instante, minha recordação,
e estas palavras que na noite escrevo
pensando em ti, para que tu as leias,
te ajudem a estar só,
                                 e te acompanhem.





eloy sánchez rosillo
as coisas como foram
trad. josé bento
assírio & alvim
2004


04 agosto 2012

josé agostinho baptista / o destino dos amantes





Dissipa-se, no longo nevoeiro, a cintilação de um
archote,
um rasto de imponderáveis amantes.
Quem por eles clama, clama em vão.
Já os pulsos se abriram para a desolação da terra.
Estes rios não são os seus rios.
E esta água mutilada,
esta luz que fere o amplo pátio dos invernos é a sua
água, a sua luz.
Onde o raio despedaça os ténues fios do amor uma
inesperada palavra assume o desastre.
Amaram-se e perderam-se.
De pé, sobre o convés, contemplando o fim dos
navios.
O albatroz descreve os vultos imensos da saudade.
Há, sobre o olhar dos condenados,
uma aflição de sombras,
quando o sol se afasta para os eus domínios.
A sedução dos frutos é a sedução da morte e,
seduzidos, eles demandaram o grande vale.
Um arco de som vibra eternamente no centro da
tempestade.
Eles voltam-se para fora,
para a unânime certeza da escuridão do mundo.
A alma parte.




josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000



03 agosto 2012

henrique risques pereira / um gato partiu à aventura


  


As palavras de vidro que tu depões em teus seios, para me ofere-
          ceres, raspam estridentes na camada imarcescível dos meus
          olhos;
Caem e eu sonho para espalhar plumas nos espaços;
Trago na mão esquerda, hermética, fechada duramente, as deli-
          cadas linhas epidérmicas,
Leio nesse rendilhado de sensações o roteiro da minha viagem
          livre, o meu voo solitário, que eu inicio saltando dos telhados
          para as janelas;
É na abstracção hipnótica do rosa íris que eu te vejo acompanhar
          a estranha aventura dum albatroz,
e é ao cair da noite que eu aceno longamente os meus braços;
É na harmoniosa vibração azul que eu transmito o Sol vermelho
          do poente e da tristeza,
e, quando as minhas mãos se transformam em pérolas puras, os
          teus olhos gelam para serem os gigantes e a noite;


Livre um gato desliza pela goteira escura da cidade,
livre uma pequena ilha nasce no ponto ignorado do Oceano,
livres as ondas escorregam na superfície marinha,
livres os pássaros e os cavalos na noite da lua encantada,
livre eu chamo-te dos cumes das serras,
livres as ondas os cavalos e os pássaros;


Abandono a terra da ilha para viver nos abismos, nas cidades
          que crescem, nos beijos que enchem o vento,
e oiço a imensa máquina que esmaga o ferro da estrada cons-
          truída, a cortina sedosa dos teus cabelos, eu e tu,
e vejo o cego que avança com os braços levantados para o mundo
          incompreensível,
e liberta os corpos visíveis: os teus lábios, os teus seios, o teu sexo;
e mães batem às janelas e imploram:  LAMA!;

A um canto morre em agonia o primeiro grito;

O gato parte à aventura pelos telhados, pelos vales e pelos Sonhos.




henrique risques pereira
a intervenção surrealista
mário cesariny de vasconcelos
ulisseia
1966




02 agosto 2012

ghérasim luca / os gritos vãos






Ninguém a quem dizer
que nada temos a dizer
e que o nada que dizemos
continuamente
o dizemos a nós mesmos
como se nada nos disséssemos
como se ninguém nos dissesse
nem mesmo nós
que nada temos a dizer
ninguém
a quem poder dizê-lo
nem mesmo nós

Ninguém a quem dizer
ue não temos nada a fazer
e que nada mais fazemos
continuamente
o que é um modo de dizer
que não fazemos nada
um modo de não fazer nada
e de dizer o que fazemos

Ninguém a quem dizer
que não fazemos nada
que nada fazemos
senão o que dizemos
nada quer dizer





ghérasim luca
sud-express poesia francesa de hoje
trad. miguel serras pereira
relógio d' água
1993



01 agosto 2012

mircea dinescu / entrevista






Aqui no campo está tudo bem e bonito
os princípios envelheceram um pouco
mas o álcool medicinal passado pelo pão rejuvenesce
e o médico recomenda-o para "uso interno".
Aqui o adro da igreja foi devolvido à agricultura
o porco mastigou a criança esquecida no berço
(de qualquer modo um e outro eram do Estado)
em geral está tudo bem aqui no campo
os pequenos vêem televisão de caneca nas mãos talvez dê leite
na rádio acabámos há muito a colheita
e em breve a acabaremos nos campos
em geral está tudo bem aqui no campo temos betão é bonito
se comprares o ovo na city
se a fábrica de chouriço deixar de piscar
o olho aos cavalos.

Aqui no campo está tudo bem
os bombeiros em geral põem fogo às casas é bonito
o tractor abre entre uns e outros
entre uns e outros um sulco profundo
está tudo bem e bonito.





mircea dinescu
1950
roménia
poemas                                      
tradução de rosa alice branco



31 julho 2012

álvaro de campos / acaso


  


No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 
Mas não, não é aquela. 
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro. 

Perco-me subitamente da visão imediata, 
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, 
E a outra rapariga passa. 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente! 
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, 
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso! 
Ao menos escrevem-se versos. 
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar, 
Se calhar, ou até sem calhar, 
Maravilha das celebridades! 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... 
Mas isto era a respeito de uma rapariga, 
De uma rapariga loira, 
Mas qual delas? 
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, 
Numa outra espécie de rua; 
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade 
Numa outra espécie de rua; 
Por que todas as recordações são a mesma recordação, 
Tudo que foi é a mesma morte, 
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. 
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas? 
Pode ser... A rapariga loira? 
É a mesma afinal... 
Tudo é o mesmo afinal ... 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.



álvaro de campos



30 julho 2012

antonio orihuela / a meio da noite


  

A meio da noite
subo as escadas que levam ao quarto.
Um declive de 85° com os degraus demasiado juntos
Para chegar a velho por ele.

A minha mulher e o cão dormem cada um no seu sítio.
Não chegarei a velho com ele, digo-lhe.

Fujamos, é hora de escapar.




antonio orihuela
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000