13 janeiro 2012

cedric elliot morrison / três poemas





1.

E assim chego
- colete, calça e paletó.

E sento-me, feliz da vida
na esplanada quase deserta.

Espero os ventos do sul
os musgos do norte
o sol de um pouco à esquerda do sudeste.

Talvez relinche como uma estrela fogosa
talvez chame o criado e fique mudo.

Talvez, quem sabe, me espante um bom bocado
chapéu de feltro cinzento na cabeça
dócil e omnipresente.

Que pergunta, interrogo-me perplexo
fiz a mim mesmo há pedacinho?



2.

As árvores
Não as que vi em criança
umas de roda do luar espelhado
no pequeno tanque
outras em dia de mortos
aparecendo desaparecendo
como presenças incertas
Não as árvores de repente ternas
como sementes
remotas como pedras

Mas as que gravitam em torno de nós
aflitas

silenciosas como um pensamento.



3.

Nas arribas de Cape Cod
aí pela manhã
um tipo pensativo põe-se a recordar
os tempos dilectos da juventude
quando trabalhava com o velho Miles
o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
E ambos galhofavam serenamente
um em frente do outro, de pés em cima da mesa

na sala traseira da vetusta lojeca
atestada de móveis como dantes se faziam
perto do farol do arquipélago de Shoals.

"Quando o vento acalmava, rapariga
a morte e a doença à porta não chegavam
à porta não chegavam, digo-te eu
minha garota, minha garota bela!"

Miles, rei das cadeiras e das mesas
o das camisas baratas de algodão

Colete, calça e paletó
e às vezes uma rosa na mão direita
- mas não como se fosse um troféu.

E tudo sem palavras, sem um gesto
sem sequer uma canção que vem de longe

que vem de muito longe e ressoa.





cedric elliot morrison
(e.u.a., 1961)
tradução de nicolau saião.





12 janeiro 2012

samuel beckett / o calmante




Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.
(…)




samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006

   


11 janeiro 2012

matija beckovic / dois mundos





A todo o momento esse dia está a chegar:
Enviaremos petições a todos os guardas prisionais

Pedindo-lhes que nos salvem de medo liberdade inverno
E nos permitam cumprir a nossa pena.

Quando finalmente nos puserem as algemas
Que o mundo perca o seu equilíbrio vergonhoso.

Entre as duas metades que formam o mundo,
Que a dos condenados possa tornar-se a maior

E os guardas, com vergonha e medo,
Uma noite destas, peçam para ficar connosco.







matija beckovic
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
tradução de josé alberto oliveira
assírio & alvim
2001





10 janeiro 2012

luís filipe castro mendes / memento mori




                                                            Death is not in life
                                                            (Wittgenstein)




Eu vi morrer  três pessoas
a uma acompanhei até ao fim,
no que seria talvez o que lhe restava de vida
ou porventura o que lhe sobrava de morrer;
outra morreu quando eu dormia,
longe do hospital:
e tive que atravessar pela madrugada
uma cidade estrangeira
para chegar à sua morte;
e meu Pai, enquanto eu ia
comprar-lhe uma garrafa de oxigénio,
que nunca soube a quem serviu depois.

Nós nunca vemos ninguém morrer,
porque morrer é por dentro de cada um,
como talvez tudo o que tenha algum sentido,
como talvez amor.

O que verdadeiramente importa
é opaco ao nosso olhar
e cada prova que vivemos
é só e única:
morrer ou ver morrer

e o amor também.





luís filipe castro mendes
relâmpago
revista de poesia
nr. 27 outubro
2010




09 janeiro 2012

gil t. sousa / história de amor




44

é sempre
uma história de amor:

a árvore
que se afeiçoa ao pássaro

o sol
que se liga à água

os olhos
que se prendem ao mar




gil t. sousa
falso lugar
2004





07 janeiro 2012

m. campos / o poeta




Castrava-o antes de o deixar sair.
Uns milímetros por dia, quando acordava a tempo.
A lima das unhas, a faca dos frangos,
a lâmina de se rapar por baixo,
qualquer coisa servia.
Ele não protestava, ainda era apenas uma questão de fé:
com o tempo talvez chegasse a ser pago.




m. campos

06 janeiro 2012

adolfo casais monteiro / a palavra impossível





Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.





adolfo casais monteiro
noite aberta aos quatro ventos
inquérito
1959.



05 janeiro 2012

sylvia plath / 39º de febre






Pura? O que significa isso?
As línguas do inferno
São enfadonhas, enfadonhas como a língua

Tripla do enfadonho e gordo Cérbero
Que arqueja ao portão. Incapaz
De lamber como deve ser

O tendão febril, o pecado, o pecado.
O pavio chora.
O cheiro persistente

De uma vela que se apagou!
Amor, amor, os fumos evolam-se
De mim como os lenços de Isadora, estou com medo

Que um lenço se prenda à roda e fique lá agarrado.
Esses fumos amarelos e sombrios
Erguem o seu próprio elemento. Não vão elevar-se no ar,

Mas girar à volta do globo
A sufocar os  mais velhos e submissos,
O indefeso

Bebé de estufa no seu berço,
A pálida orquídea
Que suspende no ar o seu jardim suspenso,

Leopardo demoníaco!
A radiação tornou-a branca
E matou-a numa hora.

A engordar os corpos dos adúlteros
Como a cinza de Hiroshima e a corroer.
O pecado. O pecado.

Querido, toda a noite
Trémula neste apagar-acender, apagar-acender.
Os lençóis ficam mais pesados do que o beijo de um devasso.

Três dias. Três noites.
Água com limão, água
De galinha, a água dá-me vómitos.

Sou demasiado pura para ti ou para qualquer outro.
O teu corpo
Magoa-me como o mundo magoa Deus. Sou uma lanterna -

A minha cabeça uma lua
De papel japonês, a minha pele lustrada de ouro
Infinitamente delicada e infinitamente cara.

Será que o meu calor não te atordoa? Nem a minha luz?
A sós comigo sou uma camélia enorme
A brilhar e a ir e vir, a cada renascer.

Creio que vou subir,
Creio poder elevar-me -
As bolhas de metal quente voam, e eu, amor, eu

Uma virgem
De puro acetileno
Tratada por rosas,

Por beijos, por querubins,
Seja o que for que significam estas coisas cor-de-rosa.
Tu não, nem aquele

Nem esse, nem o outro
(Os meus egos dissolvendo-se, saiotes de puta velha) -
A caminho do Paraíso.




sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




04 janeiro 2012

abbas kiarostami / un lupo in agguato










Traço vermelho sobre o branco da neve,
presa ferida
que coxeia

Um potro branco
nasceu
de uma égua negra
ao alvorecer

O vento levará consigo
flores de cerejeira
até à alvura das nuvens

Por cada onda alta
três ondas baixas,
por cada três ondas baixas
uma onda alta

Acompanhei
a lua
ao coração de uma nuvem escura,
bebi vinho e adormeci

Quando regressei à terra natal
a casa paterna
já não existia nem a voz de minha mãe

O céu
pertence-me,
a terra
pertence-me

como sou rico!

Um mendicante
acordou sobre a margem de um regato
um sedento
acordou sobre um tesouro




abbas kiarostami
«un lupo in agguato» (um lobo ao ataque)
ed. einaudi tascabili
tradução de mário rui de oliveira.
e a tradução do texto persa é da responsabilidade de ricardo zipoli.


03 janeiro 2012

maria gabriela llansol / estas árvores balouçam na sua hesitação




190



____________ Estas árvores balouçam na sua hesitação
Mas prosseguem. Os ramos mais altos precipitam-se,
Abrem no ar pousadas. Os mais baixos ocupam. Sol não
Falta. Há apenas a curva do caminho com incidências
Drásticas na sua respiração. Sim, há ainda as concorrentes,
As sementes ininterruptas, e o incompreensível desprezo
Dos humanos. Parasceve não diz. Se o cortarem, não
Reagirá. «Por que não entendeis a leveza de prosseguir?»




maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003




02 janeiro 2012

paul éluard / anel de paz




Passei as portas do frio
Pelas portas da minha amargura
Para vir beijar teus lábios

Cidade reduzida ao nosso quarto
Onde a absurda maré do mal
Deixa uma espuma tranquilizante

Anel de paz só te tenho a ti
Ensinas-me e volto a saber
O que é um ser humano e a desistir

De saber se tenho semelhantes.





paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002



31 dezembro 2011

clarice lispector / feliz ano novo



(Texto publicado (Folha de São Paulo) originalmente em forma corrida
(prosa) e "rearrumado" em versos livres, sem a autorização do autor,
mas como homenagem ao intenso conteúdo poético, por
Soares Feitosa.)




                O ano de ver 
                através do vidro o eclipse do sol contra a neblina
                pela janela da infância, 
                o ano de ver as primeiras imagens de
                minha mãe, 
                que era uma Greta Garbo linda 
                com ombros altos e cabelo de coque "bomba atômica" 
                e lábios vermelhos, o ano 
                da coqueluche em que meu pai me levou de avião até 4.000 metros
                para curar a tosse entre nuvens, 
 

                o ano de temer o quarto onde
                meus pais conceberiam 
                minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos
                e gente como se eu morasse 
                fora do mundo (mistério que até hoje dura), 
                o ano do medo de levar porrada nas ruas da infância, o ano
                das pernas das mulheres, colunas altas e distantes 
                (até hoje), 
                o ano dos fantasmas do fundo do corredor, 
                o ano do cachorro
                atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, 
                o ano de ficar olhando o vento no quintal, 
                o ano dos formigueiros, 
                o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, 
                o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia de minha irmã, 
                o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada, 
                o ano de entender o porquê
                dos miseráveis do morro da Mangueira 
                perto de minha casa, 
 

                o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o "Ladrão de Bagdá", 
                e ficar sonhando com as coxas da odalisca no tapete voador, 
                o ano dos balões no céu, o ano do Mercury "grená" de meu pai
                brilhando na luz da rua, 
                o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina, 
                o ano dos palavrões, o ano da "merda" e da "puta que pariu", 
                o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira
                namorada que me tratava 
                como nada, 
                o ano de temer a Deus e de contar 
                meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão,
                o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi 
                com pânico na alma, 
                o ano do Porcolino, do Pernalonga, o ano do Hortelino Trocaletra, 
                das mil e uma noites, o ano da mula-sem-cabeça e do mendigo 
                que dava mijo para a mãe, o ano
                da camisa-de-vênus boiando na beira da praia, o ano do negro
                comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da
                febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano dos
                padres jesuítas sofrendo de solidão nas clausuras e o ano 
                das lâmpadas tristes das noites do colégio, 
 

                o ano das velas de cera
                na igreja, o ano dos paramentos, o ano do coroinha sem fé, o ano
                do covarde, 
                o ano do perigo de ser currado nos fundos do colégio, 
                o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão, 
                o ano 
                da descoberta do orgulho, 
                o ano do Tarzan, 
                o ano do Super-Homem, o ano da porra, 
                o ano da punheta de esguicho que ia até o teto de ladrilho 
                por causa da primeira mulher de biquíni na praia, 
                o ano da punheta pela empregada de peitos grandes e que deixava 
                quase tudo, 
                o ano da dor nos rins, o ano
                de entrar no porão com a menina, 
                o ano de sentir o gosto de cuspe da menina, 
                o ano de sentir o cheiro 
                do entrepernas da menina e ficar 
                com aquele cheiro até hoje, 
                o ano da primeira 
                mulher e, antes da primeira mulher, 
                o ano da descoberta da literatura 
                e de Rimbaud e o ano 
                de ficar escrevendo o dia inteiro
                numa febre 
                de descobrir qualquer coisa que ainda acho que vou achar, 
 

                o ano agora sim, da primeira mulher, 
                uma aeromoça louca da Panair que parecia uma odalisca 
                caída do céu, 
                o ano do meu corpo e do corpo da mulher, 
                o ano das lágrimas quentes, o ano
                da solidão, 
                o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros
                visitados, 
                o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu, 
                com as mil mulheres tremendo a língua para fora e 
                de calça e sutiã nas calçadas, o ano dos bordéis antigos da luz mortiça, 
                o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo, 
                o ano oleoso, o ano das peles, o ano dos vasos de louça, 
                o ano de nada entender, 
                o ano da gonorréia, o ano de Thereza e de comer o primeiro amor e de flutuar 
                de paixão a um palmo das calçadas de Copacabana, 
 

                o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema, 
                de Leila Diniz, 
                o ano dos gritos 
                da mulher amada no colchão sujo e esfiapado que era um aparelho do Partido
                Comunista numa noite de chuva, 
                o ano do amor e da revolução,
                as duas coisas se confundindo 
                ("serão as bombas ou meu coração batendo?" diria o Bogart em "Casablanca"), 
                o ano da UNE
                pegando fogo, 
                o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius, 
 

                o ano do "Carcará", o ano do cinema 
                novo da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou, 
                o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo 
                do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas 
                arrancadas,
                o ano dos gritos, 
                o ano dos guerrilheiros 
                suicidas, o ano de cortar
                a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar 
                os pulsos com gilete 
                enferrujada, 
                o ano das cabeças 
                muito loucas, o ano de viver
                perigosamente, 
 

                o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e
                dos braços virando cobras na "bad trip" da beira da praia, o ano
                das ondas vermelhas e céus tangerina, 
                o ano de Copacabana
                virando gelatina colorida, 
                o ano de Janis Joplin de porre comigo
                num puteiro baiano cantando ponto de candomblé, 
                o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues, 
                de Darlene Glória, 
                o ano das filhas nascendo dentro de um buraco estrelado, 
                o ano da esperança de sentido, 
                o ano da inocência, 
                o ano da ingenuidade, o
                ano do leite, 
                o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros,
                o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho, 
                o ano das formigas, o ano das bonecas, 
                o ano do olho furado, o ano de ficar
                louco, 
 

                o ano do corno, o ano do babaca, o ano de comer mulher,
                o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo, 
                o ano do "vamos ver", o ano do "que será o amanhã?", 
                o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, 
                o ano da beira do
                abismo, 
 

                o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim,
                o ano de Collor, o ano do Itamar, o ano da hiperinflação, 
                o ano da inflação zero, 
                o ano dos Mamonas, 
                o ano dos caruarus, o ano dos carajás, 
                o ano dos genovevas, o ano dos cachorros quentes explodindo, 
                o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos, 
                o ano do último vôo livre de minha mãe.
                1996, 

                o ano da expectativa, 
                o ano dos adiamentos, o ano da 
                esperança, 
                o ano 
                que ainda não começou e acaba hoje. 
                1996, 
                o ano 
                que vai começar em 97, feliz ano novo...




                 clarice lispector