29 novembro 2009

jorge melícias / iniciação ao remorso








Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.
Onde está o meu discípulo dilecto
que não o vejo, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que partira
há muitas luas atrás,
carregando aos ombros um navio em chamas.

Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa,
e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.







jorge melícias
iniciação ao remorso
a mar arte
1998







26 novembro 2009

konstandinos kavafis / páginas íntimas





Nunca vivi no campo. Como outros, nem sequer a planície visitei, a não ser por curtos períodos de tempo. Não obstante escrevi um poema sobre o campo e dei-lhe aquilo que os meus versos lhe devem. Esse poema pouco vale. Nada existe menos sincero do que ele; uma total mentira.

Agora ocorre-me, porém, o seguinte: tratar-se-á, realmente, de uma falta de sinceridade? Não estará a arte sempre a mentir? Melhor dizendo, não será ela tanto mais criativa quanto mais mente? Quando escrevi aqueles versos, não estariam a ser produto da arte? (Não serem perfeitos talvez se não deva a uma falta de sinceridade, pois muitas vezes falhamos tendo por matéria-prima a mais sincera das impressões.) Na altura em que fiz aqueles versos haveria em mim sinceridade artística? Não estaria eu a pensar de uma forma que era como se vivesse, de facto, no campo?







konstandinos kavafis
kavafis páginas íntimas
trad. joão carlos chainho
hiena editora
1994



24 novembro 2009

jean genet / e a tua ferida, onde está?








E a tua ferida, onde está?

Pergunto onde fica,
em que lugar se oculta a ferida secreta
para onde foge todo o homem
à procura de refúgio
se lhe tocam no orgulho, se lho ferem?

Esta ferida
— que fica assim transformada em foro íntimo —
é que ele vai dilatar, vai preencher.

Sabe encontrá-la, todo o homem,
ao ponto de ele próprio ser a ferida,
uma espécie de secreto
e doloroso coração.

Se observarmos o homem ou a mulher
que passam com olhar rápido e voraz
— e também o cão, o pássaro, uma panela —
a velocidade do olhar é que nos mostra,
ela própria e com rigor máximo,
que ambos são a ferida
onde se escondem mal sentem o perigo.

O quê?
Já lá estão, já os conquistou
— deu-lhes a sua forma —
e para ela a solidão:
lá estão inteiros no retesar de ombros
em que passam a concentrar-se,
com toda a vida a confluir na ruga maldosa da boca,
e contra a qual nada podem nem querem,
pois dela é que sabem esta solidão absoluta,
incomunicável — este castelo da alma —
para serem a própria solidão.

È visível no funâmbulo que refiro,
no olhar triste
que deve reportar-se às imagens de uma infância miserável,
inesquecível,
em que ele teve consciência
de ser abandonado.

(...)





jean genet
o funâmbulo
trad. de aníbal fernandes
hiena editora
1984






21 novembro 2009

valerio magrelli / imaginei muitas vezes os olhares












Imaginei muitas vezes que os olhares
sobrevivem ao acto de ver
como se fossem hastes,
trajectos medidos, lanças
numa batalha.
Penso então que dentro de uma sala
há pouco abandonada
esses traços devem ficar
por algum tempo suspensos e cruzados
no equilíbrio do seu desenho
intactos e sobrepostos como os paus
do mikado.






valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993




18 novembro 2009

andre breton e paul éluard / a surpresa






Quando, agarrado na garganta pelo sentimento da duração, o homem renuncia a derrubar as absurdas construções da sua engenhosidade e se senta nos bancos da atenção, uma aragem glacial força-o a abotoar o casaco e a enfiar as mãos nos bolsos. Tenta corrigir com um sorriso que gostaria de tornar insolente o seu porte lamentável: as muletas da coragem estão quebradas, já nada caminha, tudo dispõe dele próprio. Abre então um jornal mas, em vão o vira em todos os sentidos, tem de se reconhecer que o dia de ontem se apresentou como dos mais calmos. Não falando de uma praga de gafanhotos sobre o Atlas, o transtorno não foi grande. O boletim meteorológico continua mudo acerca de toda a mudança de tempo de um género novo, tal como a passagem brusca do vento do órgão nas conchas ou do jorro de mulheres azuis de certas nuvens.

Não se faz a recordação da vida sem nos apercebermos que nunca encontrámos estes grandes fantasmas com olhos de carbúnculo que passam pelos livros, nem frernimos por nos encontrarmos uma noite nos braços da bela desconhecida que não esperávamos. Os momentos de pânico real foram curtos. As borboletas, felizmente, não se precipitaram para nós em massa bastante compacta para nos fazerem cair. Se a hidra com cabeças de mulher se mantinha numa pose indiferente rios terraços dos cafés, temos de confessar que, em contrapartida, ao olhar todas as noites para baixo dos seus móveis, ainda não conseguimos trocar algumas palavras senão com homenzinhos de vaidade. Pôde-se ver ao escrever a própria cabeça através da caneta, ouvir o ruído do caminho de ferro sacudindo papoulas, tocar com o dedo a estrela da sua pedra tumular, nunca se conseguiu guardar na mão um punhado de água, mesmo que não fosse senão para degolar o seu sósia em gotas de água.

Ninguém se pôde ver nos espelhos com outro rosto que não fosse o seu, nem transparente, nem fulgurante. Tudo se tem sofrido: o céu e os seus carneiros, todas as formas da tempestade e do verto, as circunvoluções do Sol e o seu viveiro de pássaros, o braseiro das canções fora de moda, os assobios das cóleras contidas, o velame estendido dos canais sanguíneos, pavilhão desfraldado nas têmporas, a luz válida, o tabuleiro de damas do seu jogo, esquecimento dos sonhos e o calendário. Nem um segundo de tréguas, unicamente um segundo um pouco mais longo do que os outros, nem um logro de 1 de Abril de Inverno. Demoras, sim, digamos a palavra como não teríamos vergonha de a dizer nos campos de corrida, demoras na presença, na ausência, na expectativa.

Que responder àqueles que não nos pedem o impossível, àqueles a que nada espanta? De olhos baixos, transportamos o fardo do silêncio desde sempre e para sempre. Não o largaremos antes de o ouvirmos suplicar que o façamos.

As mãos são foguetes que não partem, mesmo nos dias mais belos. Toda a gente se reuniu cedo de mais, nada está pronto. Os pneus das viaturas são novos, já não chove. O homem e a mulher que se amam não se amam bastante para se assassinarem na primeira vez que se vêem. Como chamá-los à boa recordação desta capa de livro, desta cobertura gelada colorida: ele, de mão no coração, ajoelhado diante dela, na via enlouquecedora, a uma volta de rodas do rápido (o Sublime Pecado)? Como mostrar-lhes, na parede por detrás dó seu leito, aquela ave planando cujas asas são feitas com duas lâminas de foice, cuja cabeça é uma borboleta espetada prestes a morrer?

Tudo está anunciado, tudo está previsto, tudo está inscrito. Urna fortaleza de sons defende o canto do rouxinol, as ilusões estão à altura da varinha mágica, a beleza dos vestidos é feita com a beleza dos corpos, a noite anuncia a aurora. Mas, por uma noite perpétua, que o rouxinol se cale, a fortaleza é conquistada.

A retorta desguarnecida de homem ainda que imperceptivelmente dourada resiste ainda às intempéries, à altura do trigésimo andar a construir da Torre de Saint-Jacques. É sustentada por dois anjos siameses. Só se consegue avistá-la quando se está completamente só.

À sombra da torre toda a terra aceita ser lavrada, aceita os seus mortos. As charneiras do pão fecham as portas da fome, o bom tempo fecha as prisões. É sempre, é nunca. Os seres possíveis interrogam os seres prováveis, já sem pais nem mães. Esperam a sua vez, fazem círculo, renunciam à luva da visibilidade. O homem, ao centro, não é mais do que a vela.









andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



16 novembro 2009

gil t. sousa / quase esplendor






10/


cedo ao quase esplendor
das coisas brevemente eternas.

debruço-me sobre esse tempo estático
e atinjo a compreensão
da morte.







gil t. sousa
falso lugar
2004




13 novembro 2009

edward t. hall / a arte como história da percepção





(…)

A maior parte dos pintores sabe que operam a partir de diversos níveis de abstracção; a sua produção depende inteiramente da vista, não podendo dirigir-se directamente aos outros sentidos. Um quadro jamais pode dar directamente o sabor ou o perfume de um fruto, o contacto ou a textura de uma carne, ou a nota que na voz do bebé faz romper o leite da mãe. No entanto, a linguagem, tal como a pintura, dá destes factos representações simbólicas, por vezes tão convincentes que suscitam reacções próximas das provocadas pelos estímulos originais. O artista é muito hábil e, se o espectador possuir a mesma cultura que ele, poderá, pelo seu lado, suprir o que falta no quadro. O escritor e o pintor sabem que o seu papel consiste em fornecer ao leitor, ao auditor ou ao espectador sinais cuja escolha é ditada pela respectiva pertinência não só em relação aos acontecimentos descritos, mas, sobretudo, em relação à linguagem implícita e à cultura do público. A tarefa do artista consiste em suprimir os obstáculos que se interpõem entre os acontecimentos que descreve e o seu público. Deste modo, extrai do mundo natural elementos que, convenientemente organizados, podem tomar o lugar da totalidade e constituir uma afirmação cuja coesão e cuja potência não se encontram ao alcance do profano. Noutros termos, uma das funções maiores do artista é auxiliar o profano a estruturar o seu universo cultural.
A história da arte é quase três vezes mais longa que a da escrita, e a relação entre os dois tipos de expressão surge nas primeiras formas de escrita, como os hieróglifos egípcios. Porém, são raros os que vêem na arte um sistema de comunicação cuja história se encontra ligada à da linguagem. A arte seria considerada de maneira completamente diferente se tal fosse o ponto de vista adoptado. O homem está habituado a admitir a existência de línguas que não compreende à primeira vista e que necessita de aprender; mas, pelo facto da arte ser essencialmente visual, espera em geral poder captar imediatamente a sua mensagem, irritando-se quando assim não acontece.

(…)




edward t. hall
a dimensão oculta
tradução de miguel serras pereira
relógio d´água
1986


10 novembro 2009

vicente valero / teoría solar





XXIX




(epitáfio)


Só, mas não morto, quase morto diríamos,
mas ainda ofegante, com as mãos inúteis
e o rosto azul. Vencido, mas ansioso. O mar
pôs palavras velhas nas minhas orações. Onda,
madrepérola, medusa, alcantil… Fui
o afogado mais duro de roer. Debaixo de água,
digno, ia cantando os poemas de Shelley.
E quando as gaivotas queriam devorar-me,
dava-lhes pão limpo de sonhos incompletos.
O mar era um deus lento, não me merecia.







vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000






08 novembro 2009

pedro mexia / rotina






Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.








pedro mexia
eliot e outras observações
gótica
2003







03 novembro 2009

david mourão-ferreira / equinócio






Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gin enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe








david mourão-ferreira
do tempo ao coração
guimarães editores
1966



01 novembro 2009

àlex susanna / natureza morta








Livros repousam sobre a mesa,
óculos, um caderno, um lápis:
os instrumentos do escritor que consumiu
o seu tempo a ler, a pensar, a escrever
tentando estruturar algum breve poema
onde entrar, repousar, retirar-se talvez
na ponta final de um dia atribulado...


Muito antes, erigiam-se templos
e até mesmo grandes catedrais:
hoje, quando a noite chega, contentamo-nos
com um abrigo, uma qualquer arcada
onde evitar esse excesso de intempérie
e enganar o frio que nos corrói os ossos.







àlex susanna
poemas
tradução de egito gonçalves





29 outubro 2009

joan-ives Casanova / pelos passos na areia…







pelos passos na areia molhada ao fim do dia poder-se-ia pensar
que estou aqui, presente, mas parti por entre brisas fugidias
e estou junto às asas do anjo no azul assustador do mar,
do céu e das sombras; e o peso triste da carne parece-se com o espelho
quebrado dos gestos e das horas, a imagem da presença dos corpos,
uma mão, uma pálpebra, o desenho da pele e a voz escutada do tempo;
o ar do dia dilui-me com frequência no fumo dos limites
e entre duas vagas algodoadas, se parece que sou real, vereis,
entrelaçar-se na tristeza o olho do desejo e o da morte,
e eu estou algures entre dois azuis gémeos que vêm apagar a noite.



seja como for o leve vento de neve voltará de certeza
êxito estranho do avesso dos dias; um anjo pousou
a mão na mesa, à beira-mar, e a cortina
dança entre o azul e o branco, encantamento do ar,
e seja como for as mãos nuas das horas alisadas
não dizem quase nada, levadas pelo anjo triste de cabelos
de ouro, e sopro de pássaros; pousada, a mão parece-se
com a sombra do mar porque ainda aí vivem homens, asas cortadas,
no côncavo da palma do deus grego, a gota de orvalho
que o caminho cego dos dias nos deixou para estancar a sede








joan-ives casanòva
poemas
tradução de rosa alice branco
encontros de talábriga