28 janeiro 2008

errar nos tempos





(46)

Nunca nos detemos no tempo presente. Antecipamos o futuro que nos tarda, como para lhe apressar o curso; ou evocamos o passado que nos foge, como para o deter: tão imprudentes, que andamos errando nos tempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence, e tão vãos, que pensamos naqueles que não são nada, e deixamos escapar sem reflexão o único que subsiste. É que o presente, em geral, fere-nos. Escondemo-lo à nossa vista porque nos aflige; e se nos é agradável, lamentamos vê-lo fugir. Tentamos segurá-lo pelo futuro, e pensamos em dispor as coisas que não estão na nossa mão, para um tempo a que não temos garantia alguma de chegar.

Examine cada um os seus pensamentos, e há-de encontrá-los todos ocupados no passado ou no futuro. Quase não pensamos no presente; e, se pensamos, é apenas para à luz dele dispormos o futuro. Nunca o presente é o nosso fim: o passado e o presente são meios, o fim é o futuro. Assim, nunca vivemos, mas esperamos viver; e, preparando-nos sempre para ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos.







blaise pascal
pensamentos escolhidos
trad. de esther de lemos
editorial verbo
1972





27 janeiro 2008

kopenhagen script







-1-

as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha

que mão amputar
se assim nos pedem o frio?




-2-

são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente

nas suas estações de
desespero



-3-

pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra

a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler


-4-

às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado



ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros











gil t. sousa
água-forte
2007







birds









gil t. sousa
birds 2007







24 janeiro 2008

abandono






A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer.









bernardo pinto de almeida
hotel spleen
quetzal
2003






21 janeiro 2008

os livros de pascale










(…)

O deserto tem muitas coisas belas, mas nada dá mais paz aos homens que o atravessam do que estar deitado de noite por baixo do seu céu. O ar seco perdeu até os mínimos vapores do dia e as estrelas tombam em cascata de um baixíssimo tecto colorido de um violeta translúcido como água; dir-se-ia que nos chovem em cima em torrente. Os perfumes do deserto desaparecem com o frio, e não resiste em redor um rumor mais consistente do que a respiração do nosso vizinho deitado um pouco adiante. De dia caminhámos, ao entardecer virámo-nos a oriente para o nosso deus e alimentámo-nos de poucas coisas gordas e boas. Bebemos a água pura e doce tirada lá de baixo, no fundo do coração do Sara, e agora só nos resta arrumar-nos no centro do céu e ficarmos em paz com todas as coisas. É o que todos fazem.

Eu procurava todas as noites colocar-me um pouco afastado dos outros, para me treinar a vencer o medo dos escorpiões que se deitam debaixo das pedras da superfície — nunca me curei deste medo — e, enfiado no meu saco-cama, olhava para cima e inevitavelmente vinham-me à mente três ou quatro versos daquelas poesias que tinha lido na praia:

Chega lá o poeta
e depois retorna à luz […]
[…] estou longe com a minha melancolia
atrás de todas as outras vidas perdidas

Estes versos que me vinham mastigados à boca eram quase como urna oração; não poderei defini-los de outro modo. Eu não tinha o meu deus como os outros. Não podia no meio das dunas arranjar um lugarzinho, pôr o tapete no chão e aliviar-me um pouco do estupor do deserto com uma confortante canção de embalar a murmurar ao Sol que se põe. Chegava à noite desarmado e sozinho. E aquele — ainda me custa a pronunciar o seu nome — apoderava-se então da noite desértica e falava por mim a seu respeito. Dizia que no meio dela, confundido com todo aquele reluzir de estrelas em silêncio, eu descobria em qualquer parte de mim uma dor, um pequeno espasmo misterioso que me fazia comover por algo que eu não sabia muito bem o que era. E, ao deixar-me cair adormecido, parecia-me ver as estrelas tombarem sobre mim sem peso e sem queimarem.

Acordava sempre com a sensação de que um escorpião estava a farejar por entre as pregas do saco-cama. Mas era a primeira luz da manhã que começava a aquecer-me. Bebia leite de camela e depois chá fortíssimo e muito açucarado, comia biscoito cozido na pedra e tornava a pôr-me a caminho com o meu jumento. Tchonc, tchonc, tchonc, batiam as minhas coxas na barriga mole da burrinha. E com aquela melodia poderia ir até ao infinito, com todos os meus sentidos tranquilamente à espera do que havia de trazer o dia.

No deserto há muitas coisas para ver, ouvir e cheirar. E cada uma tem um grande espaço em seu redor. Um arbusto enfezado de murta lança um perfume intensíssimo, mas é o único arbusto no raio de quilómetros e é o único odor que pode notar-se naquele momento. Com o olhar podem abraçar-se diversas horas de caminho e muitas montanhas e depressões e pistas que se perdem além do horizonte, mas nada está amontoado ao acaso, nada se sobrepõe e colide, como acontece numa cidade. Assim, todos os ruídos são distintos e livres de se propagarem até ao infinito. Tudo isto é muito repousante, tudo isto dá um sentimento de grande ordem e limpeza que torna fácil o caminho e nos deixa livres para pensar em sossego. Assim, o tempo torna -se uma coisa muito discutível e uma marcha de dez dias pode parecer um curto e agradável passeio. Desde que não queiramos alterar as regras. Fazem-no os que do deserto saem maltratados e perturbados ou os que não saem vivos; parece quase impossível, mas ainda há quem tente fazer as coisas à sua maneira. Eu viajava desviando-me sempre que me apetecia ver qualquer coisa ou perseguir um ruído. A corrida de um coelho, um grupo maravilhoso de rochas violetas, uma depressão escavada por fendas estranhas e complicadas, uma pista mal traçada que levasse à invisível nascente de água protegida por um beduíno e por uma palmeira anã. Inépcias deste género.

Nas horas mais quentes procurava urna sombra entre as rochas e fazia o chá com os pauzinhos que havia apanhado ao longo do caminho; o jumento tinha a sua aveia e para ele era sempre domingo. Eu pensava em muitas coisas, creio que sem cessar, mas de um modo tão suave e tão leve que nem dava por isso. Estava a dar-me a um luxo: esta minha marcha era como que umas férias de tudo. Assim cheguei a Siwa. E cheguei lá em companhia de urna data de gente.

Vinham do Sinai e estavam com as mulheres e os filhos num total que talvez fosse de duzentos, amontoados em cima de velhos camiões militares. Encontrei-os pouco antes da descida da colina de Dakrour, quando para lá da primeira barreira de palmeiras já se via a piscina de água quente que, dizem, mas não é verdade, foi construída por Marco António para Cleópatra. Avançavam pela estrada muito lentamente, precedidos por uma camioneta da milícia, os quatro camiões apinhados de gente carregada de trouxas, e em cada um deles um soldado negro e magro tentava desfraldar no ar pesado de poeira escaldante a bandeira verde da Jihad. Dos lados dos camiões estavam pendurados cartazes já desbotados com frases que eu não percebia escritas em caracteres muito grandes.

Quando a caravana me alcançou arrancando numa ultrapassagem interminável, um tipo de cara cinzenta de pó gritou-me qualquer coisa incompreensível. Fiz-lhe um gesto de saudação e por única resposta ele entoou um canto, encorajando com amplos gestos toda a gente a fazer o mesmo. Saiu um coro a custo que foi enfraquecendo logo até se tornar uma ladainha desafinada e bastante lúgubre. Deviam estar todos esgotados. Contudo, passado pouco tempo esse tal debruçou-se do parapeito e repetiu-me gritando a sua pergunta: «Inglé?». Não. Agora finalmente compreendi. «Yenky? » «Não, alexandrino, alexandrino da junihuriya árabe do Misr», respondi-lhe, com a certeza de que a minha cómica inflexão o enterneceria.

E, de facto, tal como todos os árabes que tenham uma pequena conversa na sua língua comigo, também se pôs a rir. Só que ria às gargalhadas e por entre os soluços continuava a gritar-me «Iskandariya, Iskandariya a gorda, a puta gorda, a puta gorda! Ah,, homem afortunado de lskandariya!», escandindo bem as palavras, corno se fizesse tenções de ensinar-me urna frase novinha em folha. E, com efeito, era a primeira vez que alguém, dirigindo-se a mim, usava o nome árabe de Alexandria.

Entretanto, a minha burra insistia em zurrar de despeito pela poeira que os pneus levantavam, envolvendo-nos em moles e asfixiantes baforadas de pó-de-talco. Para manter a dignidade, tentei acalmá-la com umas pancadas secas das rédeas no cu gordo. Era a primeira vez que demonstrava a minha autoridade de maneira assim brusca, e ela levou tão a mal que desatou a arrastar-me numa louca galopada pela ladeira abaixo, se calhar querendo mostrar ao vasto público dos refugiados a sua indómita burrice. Os dos camiões reanimaram-se de repente e começaram a incitá-la inesperadamente de bom humor, berrando toda a espécie de insultos. Eu só podia tentar manter-me em equilíbrio na garupa fazendo por salvar a pele. Assim, entrei em Siwa perseguido por uma horda motorizada de árabes em aclamação, meio morto de medo, agarrado às rédeas do jumento que rangia os dentes como um chacal.

Passei uma semana a tomar estupendos banhos quentes nas velhas piscinas, a vadiar pelo oásis por entre as ruínas dos antigos monumentos e a beber vinho de taráxaco no café de um pequeno hotel que tinha uns quartos estranhamente bonitos. Siwa era o Egipto, o Egipto árabe e africano, o Egipto dessa civilização demasiado velha para ser compreensível, mas que perdurava misteriosamente nos rostos de uma raça jamais vista em Alexandria: gente que falava um dialecto de sons cerrados entre os lábios e se vestia de cores conturbantes. Para mim, era como estar em viagem por um trópico que jamais atravessara.

Via coisas bastante notáveis à minha volta, coisas estranhas e exóticas, mas a minha curiosidade enfraquecia logo até se reduzir a nada. Vagueava em vez de observar. Caminhava como que pairando entre os pomares de damasqueiros e os hortos de palmeiras pejadas de cem maravilhosas qualidades de tâmaras. Brincava com os reflexos claro-escuros dos regatos ou no meio das grandes pedras historiadas do templo do Oráculo, sem realmente procurar nem descobrir nada que me sacudisse de um profundo desinteresse interior.

Em resumo, tinha a cabeça noutro sítio qualquer. Só que não sabia onde, senão poderia orientar-me de qualquer maneira. De vez em quando, ia ter com a minha burra ao estábulo onde estava alojada e, despreocupadamente, confiava-lhe que não me sentia nada brilhante para a minha idade e a minha condição. Ela, naturalmente, não respondia.

(…)





maurizio maggiani
os livros de pascale
trad. josé colaço barreiros
gradiva
1996

16 janeiro 2008

pedido de empréstimo



Arranja-me uns versos para o verão.
Coisas de areia, de memória
e sem futuro. Passos das tuas coisas
em volta, a luz perdendo
que guia o pescador, o turista
e o amante em aventuras com regresso
aos quartos onde repousa para o fim
a escassa vida.

Escreve como quem descreve quase
o fim do amor, da casa, do caminho
o teu ao meio-dia de Agosto
quase inteiro de sol
e outras poentes alegrias.





antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990




13 janeiro 2008

andre breton e paul éluard /a vida intra-uterina



Nada ser. De todas as maneiras que o girassol tem para amar a luz, o pesar é a mais bela sombra no quadrante solar. Ossos cruzados, palavras cruzadas, volumes e volumes de ignorância e de saber. Por onde é preciso começar? O peixe nasce de uma espinha, a macaca de um caroço. A sombra de Cristóvão Colombo ela própria gira sobre a Terra de Fogo, não é mais difícil do que o ovo.
Uma grande segurança — e grande sem termo de comparação — permite ao espectro negar a realidade das formas que o encadeiam. Mas ainda não nos encontramos lá. Os gestos proibidos das estátuas no molde deram estas figuras imperfeitas e espectrais: as Vénus cujas mãos ausentes afagam o cabelo dos poetas.
De uma margem para a outra, as lavadeiras lançam o nome de um personagem fantástico que percorre a terra simulando ódio por quanto beija. As suas canções são tudo o que me arrebata e que no entanto é arrebatado, como os pombos-correios fotógrafos obtêm sem o quererem panorâmicas do campo inimigo. Os seus olhos estão menos distantes de mim que o abutre da sua presa. Compreendi que o rosto da mulher só se desvenda durante o sono. Está em deslumbramento, entre as pastagens religiosas dos céus. Quer de dentro, quer de fora, é a pérola que mil vezes vale a morte do mergulhador. Por fora é a fronde admirável, por dentro é a ave. Os espinheiros dilaceram-no e as amoras mancham-no de negro, mas concede aos silvados a singular fonte do seu fervilhar de luz. Não é possível saber aquilo em que se tornou desde que o descobri.
A corça entre dois saltos gosta de me olhar. Faço-lhe companhia na clareira. Caio lentamente das alturas, não peso ainda senão o que dão a pesar de menos cem mil metros. O lustro apagado que me ilumina mostra os dentes quando afago seios que não escolhi. Grandes ramos mortos os trespassam. As válvulas que se abrem e se fecham num coração que não é o meu e que é o meu coração são tudo o que cantará de inútil numa medida a dois tempos: grito, ninguém me ouve, sonho.
Este deserto é falso. As sombras que escavo deixam aparecer as cores como outros tantos segredos inúteis.
Vou, diz-se, ver. Vou, vê-se, ouvir. O silêncio a perder de vista é o teclado que começa por estes vinte dedos que não existem. Minha mãe é um pião, de que teu pai é o cordel.
Tenho para seduzir o tempo adereços de calafrios, o regresso do meu corpo em si mesmo. Ah! tomar um banho, um banho dos Romanos, um banho de areia, um banho de areia de jumenta! Viver como é preciso saber ligar as veias num banho. Viajar no dorso de uma medusa, à flor da água e mergulhar depois nas profundidades para ter o apetite dos peixes cegos, dos peixes cegos que têm o apetite das aves que gritam para a vida! Já se ouviu cantar as aves pelas quatro horas da tarde em Abril? Estas aves são loucas. Sou eu. Já se viu o Sol cobrir a noite com o seu peso morto, como o fogo cobre a cinza? Tenho como sóis a passagem da chama ao fumo, a queixa enlouquecida de um animal acuado e a primeira gota de água de uma chuvada.
Atenção! Esperam-me. O dia e a noite vão estar na estação. Nunca os reconhecerei se me embaraçar com as malas da justiça.




andre breton e paul éluard
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972



07 janeiro 2008

dores alternadas



à Irene que oiço no amachucar
de sedas que me vão lembrando







Eu penso em ti mesmo
que à tua volta nasçam sementes
Porque sou pelo feitio
de tremenda agudeza como testemunha
de certos males
o percurso idealizado pelo punhal
a ferida aberta para o receber a todo o instante


Eu penso em ti inevitavelmente
como comboios atropelando pássaros
Dobrando sobre o joelho
os pontos cardiais
a quebrar a vingança


Porque sou neste espaço de solidões
o bafo de inventar imagens
na vidraça da janela
(Mas todas as que surgem são já conhecidas e insistentes)


Se não puder mais que pensar em ti
deixo que se me gaste o pensamento
a reduzir sentido por sentido
letra por letra o alfabeto o só
com que nos entendemos


Porque sou o desejo de voltar a andar
pelo colo das pessoas crescidas
a espreitar-lhes para dentro das orelhas


Arrecadar-te-ei sobre a minha infância
que não foi estudada
Mesmo que as rotas perdidas para me cruzarem
se encontrem
Mesmo que tenha de esquecer o vidro
para dobrar o fogo



Porque sou o percurso banal
de todos os pensamentos
feito à conta de esquecer
os que de pensamento se tornaram irrealizáveis


E se te tirarem a nossa máscara?


Guardarei o molde na parede que se me esvai
no sabor a lagos distantes com peixes esquecidos
e penso em ti


Porque sou a lei de puxar as crianças
do recreio do céu
e de desastrado piso-as


Estou a poisar na testa selvagem de qualquer animal
e mostrar ao menos que não há rendição
Ando de gatas procurando o mundo
o equilíbrio de me mascarar de sombra
e partir do momento em que ela passou
a andar de pé e a tomar conta de mim


Onde quer que seja guardarei
metade de tudo sempre que
acreditando que a outra metade nunca

Quis soprar o pó e apaguei
E sou ridículo por adivinhar-te
nos minutos que gastam pó pelas minhas janelas


Cá do colo ouço a espreitar-te
e vivo a monte por entre tantas frinchas de liberdade
nas janelas abertas como orelhas
por onde passam os teus passos
perseguindo-te novamente


Faço secar as flores venenosas
estendidas num vai-e-vem estreito como a guerra
Fico através dos instantes que passam sem mim
com o gosto de esforço inútil
a mastigar areia


Penso em ti inevitavelmente
e sou a faca clandestina
que fez da cidade fatias


Quiseste apagar a vela e desfizeste
o pó que juntei para o meu destino!


Uso a palavra amor
para que ele me chame à morte.












fernando lemos

teclado universal
cadernos de poesia
campo das letras
2004





as árvores









gil t. sousa
as árvores 2007






02 janeiro 2008

obsessão







Recta, fixa, longa, para lá, diante…
E em memória, ainda,
A corneta agreste
Daquele circo equestre…

- Que vida, meu Deus! Que mundo!
Que dolorosa agonia!

… E muito fria,
(Tão fria!)
Corre a estrada para lá…

Só num desvario profundo
Choram palhaços… Quem ria?

Fria
A rua
Continua.
- Quem vem lá?...

Meu Deus, que festa
Foi esta?
Quem se ria já não está.

Só a noite cai, caindo
Dilúvios de luz de estrela…

- E aquela orquestra
Da festa,
Que mentira foi aquela?

- Pobres palhaços,
Pedaços
De gargalhadas caindo,
Repartindo
Gargalhadas!

… E continua irritante,
De dolorosa e calada,
A fita da mesma estrada
Recta e longa para diante…











antónio pedro
devagar (1929)
antologia poética
editora angelus novus
braga
1998





30 dezembro 2007

remate para qualquer poema (ou qualquer ano, digo eu)





passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram






ruy belo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




25 dezembro 2007

as maneiras




IV





(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a extrema tarefa de estrangular uma criança.)




«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.




Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido um crime redentor.

Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias, salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.

Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.

Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não saiba.

Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas corrosivas.

Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas. Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma. Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar concretamente o espírito na matéria do tempo.

E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade, nada esconde na manga.

Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.

Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.

A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa.












herberto helder
retrato em movimento (1961-1968)
poesia toda 2
plátano editora
1973









18 dezembro 2007

finita melancolia







todos os cânticos no gume lunar da água
recolhe a noite da remota língua
que te deixo como herança este aro de ferro
esta quilha de ventos apagando a memória
onde a topografia da morte nos aprisionou

a cinza das horas veste o ferido corpo
abandonado na milenar paisagem de grafite
fulgura o indício do magoado desejo
na densa escuridão dos teus passos


l


ergue-se a tarde do mar e sepulta
o corpo que recusa as notícias do mundo
e na corda azulínea das ondas arde o olhar
daquele que de ti se aproxima insone

talvez não haja mais palavras depois
deste últimos versos o rosto esquecido
contra o vidro a unha rasgando o nome
na poeira indica ao cansado navegante
o límpido plâncton da morte


l


o mínimo de tinta dentro da palavra
faz vibrar o eixo do tempo: a casa
onde o rumor procurado se ouve tímido
em teu peito adormecido como um rio

nos confins minerais do corpo nada impede
a floração quente da terra ou a tristeza
que na plúmbea água reacende a vida e
no limiar das obscuras mãos faz tremer
o coração da finita melancolia


l


o olho avança espiando a escuridão
sobre a pele vibra a boca daquele
que fala com uma víbora na língua
seduzindo o que no silêncio escuta

a dor vem como um estilete perfura
o xisto das artérias onde estrelas turvam
os sentidos daquele que escrevendo mata
o que escuta e o que fala

tudo se dilui na cegueira lenta de querer
o que dos corpos a escrita tenta guardar:
pequenos ossos caídos no fogo das emoções


l


os ombros queimados pelos negros sinais
duma idade em que a fala e os gestos
transbordavam cúmplices de um para o outro

levantas por fim a carta recebida ontem
contra a luz fosca da janela descobres
mil presságios na rubra poeira da tarde

regressas depois aos corpos e às cidades
enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita
o amargo medo desta década sem paixão


l


o resplendor do sangue sufoca-te a boca
que já não pergunta nem responde nem sorri
e o sopro dos oceanos atordoa-te o corpo
naufragado na fímbria dos meus sentidos

imagina agora uma flor ou um revólver
na hulha nocturna disparando sémen ou
uma bala de ouro perfurando o peito
daquele que soube fingir a felicidade

e no centro dos seus olhos o poço
onde agoniza tua cabeça de cinza
iluminada


l


vivemos hoje num corpo cego e voraz
onde nenhuma cicatriz brilha ou fissura
a misteriosa memória da paixão arruinada

pernoitamos onde nos deixam e o coração
não é um relógio nem um espelho nem
a gazua para abrir venenosos segredos

ninguém dançará de alegria
sobre os vestígios incandescentes
de nossa alma carbonizada










al berto
finita melancolia
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990