27 novembro 2007

solidão de papel




não me fales mais
dessa solidão de papel

eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar

eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar

o teu nada
é só mais um perfume!

e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis






gil t. sousa
poemas
2001





25 novembro 2007

se numa noite de inverno um viajante




(…)

Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.

Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.

Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.

(…)






italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço
barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002





21 novembro 2007

alejandra pizarnik / festa




Desdobrei a minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o meu itinerário
até ao meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.








alejandra pizarnikantologia poética

trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







17 novembro 2007

todas las madres del campo






Todas las madres del campo,
con el dios de lo sencillo,
han vivido trabajando
como el que empuja la tierra
en el olvido del tiempo
sin tener más paz que pena.



Son vientres, sobreesfuerzos
que entre el destino ruedan
por misteriosos azules
alzando besos a ciegas;
fértiles melancolías
enlizadas de belleza
ganando amor por hijo
como fieras fortalezas
que no atravesará el frío
ni subrepticios de guerras.



Cantan a la sombra extraña
un día, con ansia eterna
y hasta con la voz lejana,
para retar a su fuerza;
colmadas de luz por cándidas,
colmadas de miel por tiernas
irán regalando vidas
-al par que las ven estrellas-
por todos los nuevos sitios
en donde la noche espera.



Son musas de la verdad,
del hambre a su sur abierta
diciendo al viento: "Estamos
jurándote la miseria".



Pero, sangre a sangre, alma
a alma, se recuperan
y no maldicen al cielo
ni a la fe que las entierra.








Oswaldo ROSES





12 novembro 2007

este coração devoluto




Conforta-me saber agora
que um dia, não sei bem quando,
terei quem me limpe o granito polido
de folhas velhas e de pó
e talvez me sinta
numa árvore próxima,
num fruto,
numa erva,
e de par em par
formando um elo,
a presença de alguém
que foi sem saber ser,
que perdeu nos dedos os porquês
e amor,
alguém viveu, amor,
alguém sorriu, amor,
alguém se fumou até à morte,
alguém se pensou até à morte,
se debateu de mais até à morte
sobre o sentido das pegadas nestes trilhos
traçando no chão o seu caminho
sem traçar o seu destino.
E amor,
este coração devoluto
deu guarida a sem-abrigo em excesso,
que serviu de garagem e armazém,
de hotel e pensão rasca,
de cabide e asilo, de casa de alterne
e solar de ricos
é agora um sanatório
abandonando-se a si mesmo
no desgaste de dois murmúrios.
Mas amor, olha-me nos olhos
e não chores,
evita que os teus joelhos
sangrem sobre a pedra que me cubra
e sente-me no verde de qualquer musgo
e anda para a frente e sê feliz
tem filhos e filhas e escreve um livro
sobe à tua serra e corre e grita
e sente o eco dos teus gritos,
amor,
não te abandones assim, ao Deus-dará,
não te abandones assim sem sentido
nessa tristeza,
porque amor,
neste coração devoluto
uma morada
uma casa branca
um fruto.




w.d. sevahc





07 novembro 2007

instante




o céu
é a parte mais venenosa do olhar

é um vício inútil
como uma ideia

e leva-me os dias
numa suave cegueira
para os largar
em lugares impossíveis

mais raros
do que o próprio azul
com que me esmaga
de encontro
a
este instante





gil t. sousa
poemas
2001



05 novembro 2007

esta mão que escreve a ardente melancolia





(a carta da paixão)



Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.











herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002





teresa gil





teresa gil
apanhei-te
acrílico s/tela
100 x 130 cm



xiv bienal de vila nova de cerveira



04 novembro 2007

mas que sei eu







Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha








ruy belo
todos os poemas II
assírio & alvim
2004





02 novembro 2007

estudos sobre o amor



III


[ amores sucessivos]


O mais frequente é que o homem ame várias vezes durante a sua vida. Este facto levanta uma série de questões teóricas, para além das questões práticas que o apaixonado terá de resolver por sua conta. Por exemplo: esta pluralidade de amores sucessivos faz parte da natureza masculina ou será um defeito, um resíduo vicioso de primitivismo, de barbárie? Seria o amor único o ideal, o perfeito, o desejável? Haverá, nesta matéria, alguma diferença entre o homem normal e a mulher normal?

Evitaremos, para já, qualquer tentativa de resposta a tão perigosas questões. Sem tomar a liberdade de opinar sobre elas, consideremos, sem mais, o facto indiscutível de que o homem tem quase sempre muitos amores. Como nos referimos a formas plenas deste sentimento, fica excluída a pluralidade da coexistência e retemos apenas a pluralidade da sucessão.

Não implicará este facto uma dificuldade séria para a tese aqui sustentada, segundo a qual a escolha amorosa revela a natureza essencial da pessoa? Talvez, mas antes convirá lembrar ao leitor a observação trivial de que essa variedade de amores pode ser de duas espécies. Há indivíduos que amam várias mulheres ao longo da sua vida; mas todas elas reproduzem com uma insistência evidente o mesmo tipo de feminilidade. Às vezes, a coincidência é tão grande que as mulheres partilham as mesmas características físicas. Esta espécie de fidelidade larvada, em que através de muitas mulheres se ama, em rigor, uma única mulher genérica, é extraordinariamente frequente e constitui a prova mais directa da ideia que sustentamos.

Mas, noutros casos, as mulheres sucessivamente amadas por um homem, ou os homens preferidos por uma mulher, são, na realidade, de tipo muito diferente. Considerado o facto a partir da nossa ideia, significaria que a natureza essencial do homem teria mudado de urna época para outra. Será possível uma mudança tão radical do nosso ser? É um problema crucial, talvez decisivo, para uma ciência do carácter. Durante a segunda metade do século XIX era habitual pensar que o carácter se formava do exterior para o interior. As experiências da vida, os hábitos que criam, as influências do meio, as vicissitudes do acaso, os estados fisiológicos iriam decantando, como um sedimento, aquilo a que chamamos carácter. Não haveria, portanto, urna estrutura essencial, urna estrutura íntima anterior aos acontecimentos da existência e independente deles. Seríamos feitos, como a bola de neve, da poeira cio caminho que vamos percorrendo. De acordo com este modo de pensar, que exclui um núcleo radical da personalidade, não se põe, evidentemente, o problema das mutações radicais. O chamado carácter modificar-se-ia constantemente: à medida que se vai fazendo vai-se também desfazendo.

Razões de bastante peso, que não é oportuno enumerar aqui, inclinam-me, porém, a acreditar no contrário; parece-me, pois, mais exacto dizer que vivemos de dentro para fora. Antes que sobrevenham as contingências externas, o nosso carácter interior está já formado no essencial, e embora as circunstâncias da existência influam de alguma forma sobre ele, é muito maior a influência que o carácter exerce sobre os acontecimentos. Somos por norma incrivelmente impermeáveis em relação ao que nos acontece quando não está em sintonia com esse carácter inato que, em última instância, somos. Nesse caso dir-se-á também não podemos falar de mudanças radicais. Aquilo que éramos ao nascer, seremos na hora da nossa morte.

Não, não. Esta opinião goza, precisamente, da elasticidade suficiente para se moldar aos factos em toda a sua amplitude. Permite-nos distinguir as pequenas modificações que são introduzidas pelos acontecimentos exteriores no nosso modo de ser das outras modificações mais profundas que não obedecem a motivos casuais, mas à própria natureza do carácter. Eu diria que o carácter muda, se por esta mudança se entender propriamente urna evolução. E esta evolução, como a de qualquer organismo, é provocada e dirigida por razões internas, inerentes ao próprio ser, inatas, como o seu carácter. O leitor terá certamente a impressão de que por vezes as transformações daqueles que lhe são próximos lhe parecem frívolas, injustificadas, quando não decorrentes de motivos inconfessáveis, mas que noutros casos a mudança possui toda a dignidade e todo o sentido de um crescimento. É como o rebento que se torna árvore, a nudez que precede a renovação das folhas, o fruto que se segue à fronde.

Eis, pois, a minha resposta à objecção precedente. Há pessoas que não evoluem, caracteres relativamente estagnados (em geral, os de menos vitalidade, o protótipo do «bom burguês»). Jamais modificarão o seu esquema de escolha amorosa. Mas há indivíduos de carácter fecundo, rico de possibilidades e de destinos, que esperam ordeiramente o seu momento de explosão. Quase se poderia afirmar que esta é a norma. A personalidade sofre ao longo da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, mais ainda, a homogeneidade fundamental com os nossos sentimentos passados, um belo dia percebemos que entrámos numa nova fase ou modulação do nosso carácter. É a isso que chamo uma mudança radical. Nada mais, mas também nada menos. O nosso ser profundo parece, em cada uma destas duas ou três fases, rodar uns graus sobre si mesmo, deslocar-se para outro quadrante do Universo e orientar-se para novas constelações.

Não será um acaso sugestivo que o número de amores verdadeiros pelo qual um homem normal costuma passar seja praticamente sempre o mesmo: dois ou três? E, além disso, que cada um desses amores seja cronologicamente localizável em cada uma destas fases do carácter? Não me parece, pois, exorbitante ver na pluralidade de amores a mais flagrante confirmação da doutrina aqui insinuada. A preferência por um novo tipo de mulher, corresponde rigorosamente a um novo modo de sentir a vida. O nosso sistema de valores alterou-se em maior ou menor grau — mantendo sempre uma fidelidade latente com o antigo — qualidades que antes não estimávamos, que talvez nem se quer percebêssemos, passam para primeiro plano, e um novo esquema de selecção erótica interpõe-se entre o homem e as mulheres que passam.

Só um romance oferece instrumental adequado para ilustrar esta ideia. Eu li extractos de um romance, que talvez nunca venha a ser publicado, cujo tema é, precisamente, este: a evolução profunda de um carácter masculino vista através dos seus amores. O autor — e é isso que me parece interessante — insiste também em mostrar a continuidade do carácter ao longo das suas transformações e os seus contornos divergentes, esclarecendo assim a lógica viva, a génese inevitável destas transformações. E uma figura de mulher reúne e concentra em cada etapa os raios dessa vitalidade em evolução, como essas figuras espectrais que se conseguem formar com luzes e reflectores sobre uma atmosfera densa.




ortega y gasset
estudos sobre o amor
trad. de elsa castro neves
relógio d´água
2002






30 outubro 2007

hesitação





a árvore está completa
e nua
e vai

sobe cor a cor
o olhar do homem
que hesita

do homem
que a si próprio
multiplica os dias

e os firma
no indiferente cair
das folhas

um a um
os dias e as folhas
na paisagem do homem

que a árvore
se aplica
a ceifar

como se a morte
fosse o consumar
dos sinais

de um ser
flor ou homem

eu
ou paisagem

o homem está completo
e nu
e parte

vai
esbate-se
debate-se

no desígnio
expresso
de um tempo

de um silêncio
que sem notícia
chega





gil t. sousa
poemas
2001






29 outubro 2007

gunnar ekelöf /desperta-me no sono em ti



Desperta-me no sono em ti
Desperta os meus mundos por ti
Acende as minhas estrelas mortas, atrai-as para junto de ti.
 
Sonha-me para lá do meu universo
Conduz-me à morada das chamas
Faz com que eu nasça, para mim, morre-me para eu estar junto de ti.
 
 
Mais perto, mais perto de ti
Mais perto do meu lar de nascimento
Aquece-me, aperta-me para estar junto de ti.
 
 
 
 
gunnar ekelöf
poema transcrito em “dependência”
no livro de ingmar bergman “lágrimas e suspiros”

trad. do francês de armando da silva carvalho
assírio & alvim
2002

 
 
 
 
 
 

27 outubro 2007

pensar a Europa




91 Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. O cerco aperta-se de todas as civilizações, das que sobretudo sentem em si um pólo unificador. Imaginá-la inundada do islamismo ou tingida de preto de uma inundação africana ou asiática. Imaginá-la surpreendida no entretém do seu vazio. Pensá-la servil como os escravos pedagogos em Roma, a servir de ilustração aos seus novos senhores. Ou pensá-la coalhada de electrodomésticos e computadores, na ausência de uma alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. Pensá-la dessorada, fluidificada, viscosa na indiferenciação total do seu ser. Pensar a Europa. Chorar sobre ela.




vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001