22 julho 2007

ilhas na corrente






(…)
Lograra substituir quase tudo excepto os filhos, pelo trabalho e pela vida de actividade normal, regular, que edificara na ilha. Estava convencido de que conseguira com essa vida algo de perdurável que o fixaria. Agora, quando se sentia solitário e tinha saudades de Paris, lembrava-se de Paris em vez de ir até lá. Fazia o mesmo com toda a Europa, grande parte da Ásia e da África.
Lembrou do que Renoir dissera ao contarem-lhe que Gauguin fora para Taiti pintar. «Porque há-de ele ir gastar tanto dinheiro para ir pintar para tão longe quando se pinta tão bem aqui em Batignolles?» Em francês soava melhor: «quand on peint si bien aux Batignoiles», e Thomas Hudson concebia a ilha como o seu quartier no qual se instalara, travando conhecimento com os vizinhos e trabalhando tão assiduamente como trabalhara em Paris quando o jovem Tom era ainda bebé.
Algumas vezes deixava a ilha para ir pescar ao largo de Cuba ou visitar as montanhas no Outono. Mas arrendara o rancho que tinha comprado em Montana por, ali, a melhor época ser o Verão e o Outono, e agora era sempre no Outono que os rapazes tinham de voltar para a escola.
Ocasionalmente, via-se obrigado a ir a Nova Iorque para se avistar com o seu agente. No entanto, era mais frequente agora ser o seu agente a visitá-lo e a levar as telas para o norte consigo.
Tinha uma reputação bem firmada como pintor, e era respeitado tanto na Europa como no seu próprio país, Contratos de exploração de petróleo em terrenos que o avô possuíra garantiam-lhe proventos regulares. Esses terrenos tinham sido terras de pastagem, e ao serem vendidos retivera os direitos ao subsolo. Cerca de metade do rendimento era absorvido pela pensão que pagava às suas ex-mulheres, e o resto dava-lhe a segurança necessária para pintar conforme lhe apetecia sem quaisquer pressões de ordem comercial. Permitia-lhe também viver onde lhe dava na fantasia e viajar quando se sentia inclinado a isso.
Tivera êxito quase a todos os respeitos excepto na sua vida de casado, embora, na realidade o êxito nunca o houvesse preocupado muito. O que lhe interessava era a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher que despertara o seu amor. Amara muitas mulheres desde então e, por vezes, lá vinha uma ou outra ficar na ilha. Precisava de ver mulheres ao pé de si e acolhia-as bem durante algum tempo. Gostava de as ler ali, às vezes durante longo período. Mas, no final, ficava sempre satisfeito quando se iam embora, mesmo se gostava delas a valer, Disciplinara-se de forma a deixar-se de discussões com mulheres, e aprendera a arte de não se casar, Estas duas coisas haviam sido quase de tão difícil aprendizagem como instalar-se e pintar a um ritmo regular e bem ordenado. Mas aprendera a fazê-las, e a sua esperança era que essa aprendizagem tivesse sido permanente. Havia muito que sabia pintar, e estava convencido de que ia aprendendo sempre mais a cada ano que passava. Mas fora difícil aprender a assentar e a pintar disciplinadamente porque tinha havido na sua vida uma fase em que ele próprio não fora disciplinado. Nunca tinha sido verdadeiramente irresponsável, mas indisciplinado, egoísta e desapiedado, isso sim. Sabia-o agora, não por muitas mulheres lho terem dito, mas por o haver descoberto finalmente à sua custa. Resolvera então só ser egoísta na sua actividade de pintor, só ser desapiedado no seu trabalho, e disciplinar-se e aceitar a disciplina.
(…)




ernest hemingway
ilhas na corrente
trad. jorge rosa
livros do Brasil
19..




19 julho 2007

bénédicte houart / vestem-se as dores













vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória


*


é uma casa de passagem onde
se vê o mar quando
a puta veste o fato de marinheiro e
põe a cassete da tempestade


*


mulher alguma é melhor do que
mulher nenhuma dizia o meu avô que morreu
esquecido num guarda-fatos
mulher alguma dispunha as bolas de naftalina e foi assim que
o meu avô foi primeiro lembrado pelas traças
tudo isto aconteceu há muito tempo mas
a alma não esqueceu
o nariz reconheceu

*

a puta que me pariu era a mais linda da rua formosa
eu saí a ela deve ser por isso que mal sorrio os homens perguntam
quanto é
e eu não é nada a puta que me pariu pôs-me a estudar e eu agora
só sorrio e é tudo de graça
e a seguir mostro-lhes o rabo e a seguir as pernas e ponho-me a andar
deixo-os de corpo a abarrotar
de tralha


*

um homem geme porque
o corpo da mulher que recusa
se enrosca e
a recusa é doce e um homem geme
enquanto a mulher se ausenta
estica o corpo até às nuvens
enfia os dedos no ânus das nuvens e
está frio na ponta dos seus dedos então
a mulher cose as nuvens umas às outras
monta um carrossel para se aquecer
e disse tomai os meus vestidos enfiai-os que não os quero mais
e empinou o corpo
finalmente a mulher remata o homem enrosca-se então


*

deus nos livre do mundo
soltou o moribundo
e livrou logo


*

mãe
obesa
esfrega o corpo nas coisas
derrama gordura
e as coisas brilham
Ó mãe mãe ó mãe
deixaste as coisas brilhando
para que as reconhecêssemos e agora
escorregamos nelas todas as vezes


*

hoje vou com aquele que me levar
e se for uma mulher
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se for um homem
vou com as suas mãos que remendam
e não substituem
e se ninguém houver
vou com ninguém que me leva sempre
para onde não quero
e vou com as suas mãos que substituem não remendam
é por isso que à noite
espreito para a janela dos comboios
e cumprimento-me timidamente


*


e é a sua mulher que o vai lavar quando os seus braços e as suas pernas o deixarem ficar mal vai encolhendo vai encolhendo o seu espaço já não estica os braços bocejar provoca-lhe uma dor aguda no peito as curvas do seu corpo desvaneceram-se os cantos crescem nos seus olhos para quê tantos suspiros era isto afinal e é ela que lhe vai levar a colher à boca e há-de recordar o aviãozinho que a sua mãe fazia sair da cartola os coelhos de peluche que apertava contra o peito e as coelhinhas que virilmente caçou ou as centopeias ou as centopeias tantas pernas esmagadas debaixo da sua barriga que incha incha cresce cresce a sua papada tu é que mandas é como quiseres enquanto as enrabava tic tic tic minha coelhinha o teu rabo é tão doce como o algodão cor-de-rosa que colava aos dentes quando eles ainda não tinham mastigado todas as pedras do caminho e agora gagueje meu caro senhor gaguejemos em coro já está e depois tinha sido tão rápido que chorava por mais e há-de desejar tudo recomeçar o sangue nas veias fervia e era tão quente que todo o ar evaporava em seu redor e as janelas embaciadas mais tarde recorda-se não havia mais ninguém e o escuro ainda lhe metia medo e havia cada vez mais coisas que lhe metiam medo e todas essas coisas eram escuras mãe mãe mas mesmo a mãe tinha escurecido debatia-se agora com fantasmas de terra os mesmos fantasmas que em vida para quando para quando o sossego mas agora eram outras as vozes que gritavam e essas vozes eram impacientes como dantes a sua e a sua a sua balbuciava agora doces imprecações e nem as ouvia e os seus ouvidos babavam-se decentemente ó velho tens uma meia de cada cor ó velho perdeste os suspensórios ó velho tens terra até ao pescoço e o teu pescoço já era uma maçã que até de apodrecer se esqueceu

*

acho que as crianças devem ser mantidas na ignorância
de certas coisas da vida
pois não sabendo nada sabem nada e é
muito embora muito pouco pareça muitas coisas aparecem
nós já não sabemos como nada pesa tanto que
só um pequenino pode ser derrubado
e do chão vir-se com as estrelas é quando chovem
as gotas escorrem-lhe dos dedos e são as lágrimas benditas
seja maldita a nossa incompleta desolação


*

creio em terra toda poderosa
jazo desde já alegremente aqui


*

estou a apodrecer
diz o rapaz e
cheira a noz moscada e
cheira a noz moscada
debaixo dos meus braços
há muitos odores para o apodrecimento


*


calma rapaz
se tens a vida toda
se tens a vida toda
que te enterra
se tens a morte toda para trocar


*

no dia de todos os mortos quero um homem
bem vivo na minha cama
pois os mortos são muitos e
dos vivos basta um
se não chegar
dá deus outro
parecido com os demais onde é preciso
cada vivo desalinhar













bénédicte houartinimigo rumor
número 15
2º semestre 2003


16 julho 2007

harold pinter / poema






Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Ia comprar uma vidraça e um xaile branco,
Para lá dos penedos e do monte banhado pelo sol.
Mas um desconhecido disse-nos que a feira já tinha terminado,
E eu dei meia volta com a minha única mulher.

E eu dei meia volta e conduzi-a a casa.
Ela seguiu-me de perto para longe do Verão,
Para lá dos penedos e do monte banhado pela lua,
Através das dunas ao cair da noite,
E chegou à nossa casa sem vidraça,
E o comprido ano espreguiçou-se vindo de leste.

A minha única mulher sentou-se ao lado de uma vela.
O Inverno lamentava-se à porta.
Uma viúva trouxe-nos um longo xaile preto.
Eu coloquei-o nos ombros da minha fiel mulher.
A viúva foi-se embora através das dunas,
Afastou-se da nossa casa sem vidraça.

O ano transformou-se em alvorada prematura.
Parti uma manhã com a minha única mulher,
Para longe das dunas em direcção à feira de Verão,
Para vender uma vela e um xaile preto.
Separámo-nos no monte banhado pelo sol,
Ela em silêncio, eu para o extremo oeste.

1953










harold pinter
várias vozes
trad. pedro marques
quasi
2006







12 julho 2007

fio de lume







ias num fio de lume

quase água
quase o mar a noite

quase a corrente

os lábios
os teus lábios quase ilha

dentro dela quase o mundo
as linhas

todas as linhas o mapa
quase o segredo
que pintei no coração

um fio de névoa te levava

aranhas doces os teus olhos
asas que me tecias

e gestos quase um sismo
pedras mudas a minha voz
e dançava
quase dançava







gil t. sousa
poemas
2001




poema









antónio maria lisboa
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992






11 julho 2007

a erc josamu jove







Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum.
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros, oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente –

asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém


Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins










manuel de castro

surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992









10 julho 2007

32





desviei para leste do diabo
onde existe uma terra,

colinas secas que prolongam
o dorso de um cabo maldito,

encerrado de imensas histórias de fim
e um gigantesco mar de água.

nos dias de menos fogo,
os pescadores juntam-se,

à volta de um balde sem fundo,
e tentam pescar a terra.

o sol já não existe para este lado,
e quando da onda há outra força,

pelo lado direito existe, igualmente,
um começo de noite, um diferente silêncio,

são todos os animais,
dos que se deitam tão antes dos homens.

excepto os mais inquietos,

os que ainda noite dentro
se encerram uns nos outros

e ficam horas deslocadas
a fornicar a cor que o céu nesta terra tem,
que é a cor de uma suspeita de trabalhos.
quando vim para aqui seria para evitar o caos,
bem longe de tempo ser tempo,
e fabricando alguma paixão e
passar menos quente nas almas dos outros.












sofia crespo
anunciada embarcação na histeria
& etc.
1997.







09 julho 2007

reflexões / teoria das artes literárias de Home





Teoria das artes literárias de Home



Foi talvez na análise das artes literárias, a que uma boa metade dos seus volumosos Elements of criticism se consagra, que Home melhor mereceu o nome de Aristóteles inglês. A preocupação concreta, o exemplo, as citações; o método comparativo que se exerce entre estas diversas citações; o sentido e o gosto da classificação; a enumeração e a análise dos sons, das partes dum discurso, da sintaxe, das regras de métrica e de prosa harmónica, dos tropos e das figuras, constituem um conjunto cuja riqueza concreta é digna dos trabalhos mais minuciosos duma ciência moderna das artes, e não tem comparação em toda a estética anterior, a não ser com certos tratados especiais da arte de escrever ou melhor ainda, o modelo de todos desde a Antiguidade, a Retórica de Aristóteles. Mas esta nova teoria da arte literária é precedida duma estética geral da expressão e dos seus meios, que a enriquece e a enquadra, dando-lhe o carácter de sistema.


1. A expressão artística

Ë onde Shaftesbury deixou o problema das artes que, com um outro espírito, Home o retoma. Home verifica que, de todas as belas-artes, só a pintura e a escultura são, por natureza, imitativas. Pelo contrário, é das artes não imitativas que Home trata. Um campo ornamentado não é cópia ou imitação da natureza, mas a própria natureza embelezada. A arquitectura é produtora de originais e não de cópias da natureza. O som e o movimento podem, numa certa medida, ser imitados pela música, mas a música é sobretudo, como a arquitectura, produtora de originais. A linguagem também não é uma cópia da natureza: e é significativo que um capítulo sobre a arquitectura e a arte dos jardins se siga ao seu sistema da arte literária. Sem dúvida os sons podem, à maneira das onomatopeias, assemelhar-se pela suavidade ou rudeza às ideias que excitam; do mesmo modo, a rapidez e a lentidão de pronunciação têm alguma semelhança com o movimento que a palavra significa. Não é menos verdade que o poder imitativo das palavras não vai longe. Ë muito verdade também que a plenitude, a suavidade, a rudeza do som das palavras são por si sós música e compõem na palavra uma beleza sensual para o ouvido: é o seu segundo efeito, independente da significação do poder imitativo.

Mas seria erro não descobrir na palavra uma beleza própria da linguagem: essa beleza, nascendo do seu poder de exprimir os pensamentos, está apta a ser confundida com a própria beleza do pensamento: a beleza do pensamento, transferida para a expressão, fá-la aparecer mais bela. Contudo, essa beleza deve ser distinguida da beleza do pensamento. É, na realidade, distinta. As causas da beleza original da linguagem, considerada como significativa, serão expostas aqui. Essa beleza é a beleza de meios apropriados a um fim, o de comunicar o pensamento, e é evidente que de várias expressões, todas acompanhando o mesmo pensamento, a mais bela, no sentido em que a palavra aqui é tornada, é aquela que, de modo mais perfeito, responde ao seu fim.

2. O jogo das representações e das paixões: suas leis

Observemos as emoções e as paixões. Podem ser aprazíveis e penosas, agradáveis e desagradáveis. Mas não se distinguiram cuidadosamente uma da outra: agradável e aprazível são considerados sinónimos. Ora, isso é um grave erro no domínio da ética. Há paixões penosas que são agradáveis e paixões agradáveis que são penosas. Daí a existência de sentimentos mistos, como o heroísmo e o sublime, o trágico e o risível. A piedade é sempre penosa e todavia é sempre agradável. A vaidade, pelo contrário, é sempre agradável e desagradável. A ciência da crítica deve, pois, aprofundar mais essas distinções que o simples conhecimento vulgar. É preciso ter ainda em conta o jogo dos cambiantes, do crescimento e do declínio das paixões, da sua interrupted existence, Um autor prevenido sabe este jogo da intermitência das paixões, da propensão de certos temperamentos; a perfeição do primeiro choque nas emoções de subitanidade, como o medo, a cólera; o ritmo lento ou vivo de crescimento ou decrescimento das paixões; o que nelas há de excessivo; a queda das paixões quando tocam o seu termo; o efeito também do costume e do hábito; o efeito inverso da novidade.

Tem em conta ainda não só as leis da evolução das paixões, mas o facto de emoções e paixões poderem ser coexistentes. Certas emoções podem suscitar vários sons simultâneos. Há emoções combinadas que dão apenas um e não dois ou vários sons no seu conjunto. As emoções perfeitamente semelhantes combinam-se e unem-se, reforçam-se; as emoções opostas sucedem-se e alternam. Se as emoções são desiguais em força, a mais forte, após um conflito, extinguirá a mais fraca. Ora, todas as observações precedentes têm a maior utilidade nas belas artes. Muitas regras práticas derivam daí: a associação das emoções do som e das palavras na música vocal, a sua congruência, as suas dissociações; a tragédia, a ópera, etc.

A coloração e a influência da paixão afectam as nossas percepções, as nossas opiniões, as nossas crenças. A paixão faz-nos acreditar nas coisas diferentemente do que são; todos os erros ou as faltas trágicas vêm daí.

As emoções, enfim, assemelham-se às suas causas. Uma queda de água sobre os rochedos cria no espírito uma agitação confusa e tumultuosa, extremamente parecida com a sua causa; um movimento uniforme e lento cria um sentimento calmo e gracioso, etc. Daí a empatia ou a «simpatia» que, segundo Home, muitas vezes se lhe assemelha: A contrained posture, useasy to the man himself, is desagreable to the spectator.


3. A linguagem das paixões

Significa isto que as paixões têm a sua linguagem. A arte é a linguagem das emoções. Daí as suas espécies, consoante o que traduz - beleza, grandeza e sublimidade, movimento e força, cómico, dignidade e graça, ridículo, espírito — e acima de tudo isto a ordem e a harmonia que as equilibram - as semelhanças e as disparidades, a uniformidade e variedade, a congruidade e a propriedade.

Significa sobretudo que as emoções e as paixões se exprimem. Têm os seus sinais exteriores. A alma e o corpo estão tão intimamente ligados que «cada agitação na primeira produz um visível efeito no segundo», Home prossegue: «A esperança, o temor, a alegria, o desgosto mostram-se exteriormente; o carácter dum homem pode ler-se no seu rosto; e a beleza, que tão profunda impressão faz, é bem conhecida como resultado não tanto de feições regulares e duma bela carnação como duma natureza amável, do bom senso, da doçura ou duma outra qualidade de espírito, expressa pela atitude.»

Ora os sinais exteriores da paixão são de duas espécies: voluntários e involuntários; entre os sinais voluntários, alguns são arbitrários, outros naturais. As palavras são sinais voluntários arbitrários. A outra espécie de movimentos voluntários compreende certas atitudes, gestos, etc. Os sinais involuntários ou são temporários (e desvanecem-se com a emoção que os provoca) ou tornam-se sinais permanentes duma paixão formada violenta e gradualmente. Os sinais naturais das emoções, quase os mesmos em todos os homens, formam uma linguagem universal.

Ora nenhum dos sinais das emoções deixa o espectador indiferente: produzem diversas emoções. Cada paixão ou classe de paixão tem os seus sinais particulares. Por isso compreendemos de maneira inata os sinais exteriores que se referem a uma determinada paixão: «A paixão, estritamente falando, não é objecto do sentido externo, mas os seus sinais exteriores são-no.» Por isso ajuizamos rápida e seguramente o carácter, conforme a aparência exterior.

Os sentimentos não são menos reveladores. Cada pensamento gerado pela paixão é chamado sentimento. Quer isto dizer que a paixão ou a emoção não deve separar-se dele. É infringir a lei de conveniência da linguagem com a paixão fazer com que a paixão se retire dela. Home dá como exemplo os Franceses em que cada personagem discorre como se fosse um frio e desligado espectador dos seus próprios sentimentos.

Finalmente, a paixão é eloquente. Entre os pormenores em que se exprime a parte sociável da nossa natureza, observa-se uma propensão para comunicar as nossas opiniões, as nossas emoções e todas as coisas que nos afectam. Ora é preciso que a linguagem, isto é, o tom e a paixão concordem: é preciso que haja congruência de tom. Um deve assemelhar-se a outro e convir-lhe como seu trajo. Os sentimentos são ajustados aos caracteres e a expressão aos sentimentos. Daí os cortes bruscos da paixão, o desenrolar assintáctico dos solilóquios; daí o acordo das próprias imagens com a paixão ou a emoção.


4. Valores da linguagem

Quer isto dizer que há diferentes valores e belezas diversas na dicção duma só coisa, e que as palavras e a arte literária exprimem as paixões e as emoções que estão encarregadas de reproduzir (não de imitar) mais ou menos bem. Existe pois um estudo cerrado e avançado de todos os recursos do discurso, da fonética, do vocabulário, da sintaxe, dos tropos e das figuras, da unidade geral da obra. Ser bem sucedido é um perpétuo problema de expressão e a arte literária é uma arte de bem dizer.

Por isso a obra conclui por uma procura duma norma do gosto, como começara por uma introdução sobre o gosto. Porque o problema que a arte literária põe vai muito mais longe do que ela e supõe toda uma cultura, imaginação, paixões civilizadas e valores diversos da sua expressão. A arte literária está acima de todas as artes. A sua própria função, expressiva e apaixonada, faz dela a mais requintada das artes do gosto e a arte mais embebida de crítica.













raymond bayer
história da estética
trad. josé saramago
editorial estampa
1979





07 julho 2007

sábado






Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.




Isto era o destino:


chegar à margem e ter medo da quietude da água.











antonio gamoneda
livro do frio
(5-sábado)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999





05 julho 2007

febo del poggio






Acordo. Que disseram os outros? Aurora que, cada manhã, reconstróis o mundo; integral nos braços nus que conténs o universo; juventude, aurora do homem. Que importa o que outros disseram, o que pensaram, o que acreditaram. Sou Febo del Poggio, um bobo. Os que falam de mim dizem que sou pobre de espírito; talvez nem tenha espírito. Existo como um fruto, como um copo de vinho, como uma árvore. Quando vem o Inverno, as pessoas afastam-se da árvore que não dá sombra; comido o fruto, deitam fora o caroço; vazio o copo, vão buscar outro. Eu aceito. Verão, água lustral da manhã sobre membros ágeis; ó alegria, orvalho do coração…

Acordo. Tenho diante de mim, atrás de mim, a noite eterna. Eu dormi milhões de idades; milhões de idades eu vou dormir… Só tenho uma hora. Havia de estragá-la com explicações e com máximas? Estendo-me ao sol, sobre o travesseiro do prazer, numa manhã que não voltará mais.










marguerite yourcenar

o tempo esse grande escultor
trad. helena vaz da silva
difel
2001








03 julho 2007

diz...







diz aquilo que o fogo hesita dizer,
sol do ar, claridade que ousa,
e morre porque o disseste por todos.









rené char
furor e mistério
trad. margarida vale de gato
relógio de água
2000








four boys on a beach







Winslow Homer
Four Boys on a Beach, c. 1873
John Davis Hatch Collection, Andrew W. Mellon Fund
1979.19.1
National Gallery of Art





01 julho 2007

para um livro de leituras escolares







não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exactos. desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga quotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito

e são meticulosos por ti.










hans magnus enzensberger
poesia do século XX
(de thomas hardy a c.v. cattaneo)
tradução de jorge de sena
editorial inova
1978