26 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




 
2/3

…/

Ora eu não era, não fui nunca cristão, por isso sabia
(sem palavras para dizê-lo, aos outros, ou
a mim) que a teologia, incluindo a teologia suíça,
é uma coisa carnal, antes de pensada
sentada nas vísceras, na agonia dos corpos (*),
e também que a ideia de inocência é uma ideia
perniciosa e culpada, como um quarto
completamente vazio com calendário na parede
e roupa pouco limpa pelos cantos,
é uma ideia nascida em cabeças pouco limpas
pelos cantos, uma coisa verdadeiramente sem interesse
em realidade ou fantasia. Por isso admirei
o enfado atraente de B., o bocejo invisível de B. que me lembrou
a hora do último autocarro, acabada de passar,
o último autocarro, acabado de partir,
a possibilidade de alguns quilómetros de marcha
no alcatrão silencioso, rumo aos subúrbios,
passando primeiro em frente ao museu des Augustins
e depois em frente ao palácio des Sports
onde o show de catch estaria terminando agora,
depois ao longo do canal, depois em frente até
ao alcatrão liso, deserto, dos subúrbios,
a maneira que B. tinha de encolher os ombros
só com a voz, a exactidão
indiferente de B. diante do homem suíço e de mim,
a juventude de B. afirmando a sua não inocência
diante do homem suíço e diante de mim,
o corpo inteiramente vestido de B., inteiramente escuro
e outro dentro da roupa, o avesso inteiramente outro
da roupa de B. no corpo de B., escondido
do homem suíço e escondido de mim. Talvez
a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. Pensei então noutras circunstâncias
estaria noutra praça, noutra cidade, noutro país,
e não estaria a ouvir falar de santidade e Jesus e
a recordar Rodes e o monge enlouquecido que
distribuía imagens santas junto ao porto
mostrando os dentes aos jovens marinheiros.
Os emigrantes nunca falam perfeitamente
a língua estrangeira onde vivem, onde talvez
acabem por morrer, nunca são exactos e claros
sobretudo em língua francesa; e com o tempo
com a passagem dos anos deixam também
de ser exactos e claros na sua língua mãe,
de ser exactos e claros na realidade
como na fantasia. Assim enquanto eu
me deixava enlear no mistério da trindade
no tratado de Agostinho, e no kerygma de Barth
e em toda a vasta agonia teológica e suíça
do homem suíço menos jovem, de mala
e óculos e mapa da cidade agora deixado
aberto sobre a mesa vermelha com cinzeiro e copos
enquanto me enleava e agoniava e seguia
os gestos do homem suíço menos jovem
que agora, subitamente, se inquietava
de não ter reservado quarto em nenhum hotel,
nem conhecer ninguém, nem poder partir
para a suíça antes de amanhã, antes de
visitar o museu des Augustins e ver o mártir
varado de flechas, antes de resolver o mistério
da inocência que se deixa usar (pelos inocentes
e pelos não inocentes), antes de voltar
já sozinho e sem mapa a este café
a esta mesa estrangeira e aromática onde agora
a tentação, confusa, lhe revela
a razão e a agonia da teologia, assim enquanto
eu me enleava a agoniava ao hálito
teológico do homem suíço menos jovem,
B. inclinou a boca para o meu ouvido
E murmurou: sale pédé, que era ou seria o homem suíço,
c´est toi qu´il veut, ou outras palavras
mais exactas e precisas na sua boca francesa
sem hálito, como uma boca vestida
do avesso. B. inclinou a boca
para a minha nuca, senti o sopro da sua boca
e pensei na sua boca enquanto se inclinava
para mim. Não vi os lábios, não vi a boca
de B. que se inclinava para mim,
só imaginei a boca de B. enquanto realmente se inclinava
para mim, para o meu corpo emigrante mal vestido
com roupa emigrante, onde o corpo aparecia.
Para melhor ver B. quase fechei os olhos
para obter um efeito tri-ou tetra-dimensional,
não o fazer mas o desfazer, não a imagem mas
o sopro da boca de B. virada do avesso
que se inclinava para mim. Na recepção
do hotel o rapazola nocturno
olhou-nos com indiferença. O homem suíço
sentiu-se, subitamente, na impossibilidade de falar
francês ao rapazola nocturno e francês da recepção;
faltavam-lhe palavras, ar, indiferença. A teologia
da tentação, confusa, brotava-lhe da boca suíça
irremediavelmente, confundindo as palavras francesas
irremediavelmente estrangeiras. A tentação, confusa,
fazia-se carne diante do homem suíço confuso, incapaz
de falar ao rapazola nocturno, inteiramente
cortês e indiferente. Enquanto eu, agora,
à luz branca e demasiada da recepção, do átrio,
enquanto eu, agora, via no rosto confuso do homem suíço
o horror da tentação, a confusão e a agonia da teologia
do homem suíço incapaz de palavras francesas
irremediavelmente estrangeira diante do rapazola nocturno
da recepção nocturna, cortês e indiferente,
via no rosto confuso, desfeito, do homem suíço
o horror e a agonia da tentação, enquanto B. usava
a precisão, a exactidão das palavras francesas
para trocar opiniões com o rapazola nocturno
sobre hotéis filmes cinemas sociologia! enquanto
eu via no rosto do homem suíço as imaginações
do homem suíço no quarto de hotel 3º andar
e via, nas imaginações do homem suíço
vistas no rosto desfeito do homem suíço,
o corpo de B. a despir-se da roupa ao avesso
do corpo de B. a despir-se, a nudez da roupa de B.
junto ao meu corpo, juntos na inocência e na não inocência
do meu corpo emigrante, agora nu, juntos a usar
a não inocência, a tentação, confusa, a teologia, e
o quarto de hotel do homem suíço teólogo, a ansiedade
dos olhos do homem suíço sem óculos, sem mapa,
a usar a inocência confusa do homem suíço
para despirmos a roupa francesa e emigrante
a três, a quatro dimensões, para sabermos
quem somos, B. e eu, agora indiferentes ao homem suíço,
ao rapazola nocturno, à luz do átrio excessiva.
 
/…
 
 
(*) por isso a teologia é teológico-política.
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999



 


25 abril 2023

antónio franco alexandre / le tiers exclu, fantasia política

 




1/3

Tínhamos encontrado um pederasta suíço
num café da praça Wilson, na esplanada que
com as suas toalhas carmesim e candeeiros
me recordava Rodes ao entardecer
apesar de ser noite, e já
ter passado o último autocarro para os subúrbios.
Pelo menos, a meio da conversa, B. inclinou
os lábios para o meu ouvido
e murmurou: sale pédé, sem interromper
o suíço (fosse qual fosse o seu nome) que
incessantemente falava, perguntava, comentava,
oferecia cervejas, recordações, licores
ornamentais com pequenos chapéus japoneses.
Em frente, do outro lado da grande oval rosa-escuro
dos edifícios d tijolo da praça Wilson,
um grupo de gente à saída do cinema
dividia-se, precipitava-se
para as paragens de autocarros (tarde demais),
para os cafés iluminados, aromáticos, para os parkings
subterrâneos, para os grandes portões subterrâneos.
Normalmente, normalmente! teria ido a outro café,
Teria estado noutra praça, noutra
Cidade talvez, teria discutido marxismo
e literatura com C. ou com D.,
teria jogado xadrez com o meu amigo espanhol
de Albacete, anarquista por piedade filial,
teria apanhado a horas o autocarro dos subúrbios!
e dormido na cama metálica, diante da mesa metálica,
no meu quarto subterrâneo pintado de verde metálico
minúsculo e frio com a janela alta para o pátio
e o calendário na parede com férias a vermelho;
teria fumado um cigarro, ouvido em LP
os primeiros vagares da sinfonia des adieux, e lido
as mais pequenas linhas do Canard Enchaîné,
e estaria sonhando com colinas
e o cheiro singular das raparigas, ou a ter
o vulgar pesadelo que começa
por uma luz aberta em mãos de gesso;
mas nada disso aconteceu.
Porque jantara, só, num self-service de cimento,
vendo, por vidros foscos, restos do mercado
de frutas e de peixe, deixados tristemente
a apodrecer nas mesas de madeira;
porque encontrara B., só, à entrada de um cinema,
olhando as fotos com ar dubitativo (o ar de sempre)
e lhe dissera: vou tomar um café ao Capitole
e B. riu, um pouco, misteriosamente (o pouco de sempre):
discutir marxismo e literatura? antes os burgueses
que ali (na outra praça, oval, do outro lado)
se sentam confortáveis às mesas luminosas,
não pagam mais do que vocês por xadrez e fumo,
e ainda nos compram o seu prazer de escravos! recordei
hegel, mas: vocês! não me queria em bando
não, certamente, na voz de B., na voz
irónica, ou curiosa, neutra possivelmente, de B.
que eu mal conhecia então, um vago encontro
nos corredores da faculdade, nos cafés, no bar
da rue de valois talvez, onde bebia laranjada
em sábado de orgia: não me queria
assim imaginado. Talvez assim na realidade,
real assim na realidade, que não é fantasia,
discutindo estrutura e sentido, realidade e fantasia,
mas ainda lançando os dados no meio da praça! mas
ainda vivendo, lembrando, trocando os recados
da carne jovem atravessada! mas ainda vivendo
dentro ainda da infância, do desespero
e da aflição e da imensidade da infância,
mas ainda recolhendo a sufocante presença
ainda em nós da infância! e porque
decidi não ir essa noite ao Capitole
acompanhei B. até à praça Wilson que ficava
no caminho para a paragem de autocarros
e sentámo-nos a uma mesa escarlate com candeeiro
respirando o ar doce e oval de toda a praça
silenciosamente; até que um homem menos jovem
de óculos e mapa perguntou se realmente valia a pena
visitar o museu des Augustins, amanhã claro está,
porque à noite está fechado. Seria imbecil?
B. fez um ar enfadado, atraente. Era esse um homem suíço,
não recordo o nome, com óculos e mapa da cidade,
e nos olhos por detrás dos óculos a ansiedade
normal, pensei, num turista que passa
sem conhecer ninguém por toda a terra,
era um homem suíço que, satisfeita ou insatisfeita
a sua curiosidade sobre o museu des Augustins
passou subitamente a falar de santidade e inocência
e Jesus Cristo e Robert ou Rupert Bultman ou Bootman
e alpes e Zürich e inocência e santidade
e vocês, vocês tão jovens, tão decerto inocentes!
B. de ar enfadado, atraente, disse: eu não
eu decerto não mas aqui A. é talvez inocente
assim proclamando não estarmos juntos nem na inocência
(possível) nem na não inocência (possível)
aqui este meu amigo A. é talvez inocente ficou
talvez mergulhado no sofrimento da inocência desde
as colinas da sua infância até esta rosácea oval
quem sabe? Já nessa altura eu sabia
(mas sem palavras para dizê-lo) que os inocentes ignoram a inocência
ignoram a sua inocência e ignoram a inocência dos outros
por isso estão talhados para a inocência e o sofrimento da inocência
por isso estão talhados para ser vítimas da inocência
e da não inocência dos outros, porém
na altura o que admirei foi a maneira como
B. se fez conhecer do homem suíço e de mim
como se afastou da inocência diante do homem suíço e de mim
como se afastou de mim diante do homem suíço e de mim
enquanto o homem suíço repetia (quase gritava) vocês!
tão jovens! certamente inocentes! e eu pensava
que era assim sempre um teólogo de teologia suíça
viajando pela europa com a cabeça teologal e só
uma pequena mala que, observei, estava encostada à mesa.
 
/…
 
 
 
antónio franco alexandre
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999
 



25 de abril sempre! fascismo nunca mais

 


24 abril 2023

josé gomes ferreira / homens de outros séculos

 
 
II
 
Homens de outros séculos:
invejai-me!
 
Cá estou no século vinte
no Dia do Grande Ruído
quando se escancaram na terra
as Portas de Bronze
para todos os recomeços…
 
…E os braços dos mortos abriram no chão
caminhos de garras
para obrigar as sombras dos homens a erguerem-se no êxtase
de morrer de pá!
 
Cá estou no século vinte
nesta paisagem de bocejos
e estrelas estagnadas
onde só há cegos
presos na própria noite
aos tombos de declive…
– sem ao menos suspeitarem
de que anda uma nova Morte pelo mundo!
 
Cá estou no século vinte
nesta primavera de cadáveres
tão contentes de terra
que até beijam as raízes
para que as flores dos outros
nasçam mais límpidas
nas manhãs do sol múrmuro a espreguiçar-se no vento
                                                           das planícies…
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia II
invasão 1940-1941
portugália
1962




23 abril 2023

joaquim manuel magalhães / grahams bond registered



 

Onde apareces chamo eu uma janela,
o que não sou eu, um rosto, essa palavra
com que digo o que despedaças,
uma rouca fachada,
um resto que lembro quando te vais embora,
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981


 


joão miguel fernandes jorge / vanitas







 

 
Vem. Abre o livro.
Quem lê não está morto.
Somente aproxima as palavras
da chama do tempo.
Quase foge. Quase se funde
na luz da vela.
Vem. Lê baixo, num murmúrio,
as palavras.
Último esforço ruinoso, as palavras
fecho de um mundo sem esperança.
A palavra
a última que puderes ler
reflecte na fundura da órbita
a causalidade de deus.
Irradia a última palavra
luz interior
a imagem incendeia a própria caveira
dessa palavra
vem
abre o livro
quem lê não está morto
 
              
                                /Mestre desconhecido, pintura italiana, séc. XVII/
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
museu das janelas verdes
relógio d´água
2002





22 abril 2023

cesare pavese / tolerância



 

Chove sem ruído no prado do mar.
Nas ruas sujas não passa ninguém.
Do comboio desceu uma mulher sozinha:
por baixo do casaco comprido viu-se a combinação clara
e as pernas desaparecerem por uma porta escura.
 
Dir-se-ia uma aldeia submersa. O anoitecer
pinga, frio, sobre as soleiras das portas, e as casas
espalham na escuridão um fumo azulado. As janelas
acendem-se, avermelhadas. Acende-se uma luz
entre as portadas fechadas na casa às escuras.
 
Na manhã seguinte está frio e o sol brilha sobre o mar.
Uma mulher em combinação lava os dentes
na fonte e a espuma é rosada. Tem cabelos
louros arruivados, semelhantes às cascas de laranja
espalhadas no chão. De bruços na fonte, nota pelo canto do olho
um gaiato moreno que a fita encantado.
Mulheres feias abrem as portadas de par em par para a praça
– os maridos dormitam ainda, no escuro.
 
Quando volta a noite, a chuva recomeça
e crepita sobre as muitas lareiras. As esposas,
ao remexerem as brasas, deitam olhares à casa
às escuras e à fonte deserta. A casa
tem as portadas fechadas, mas lá dentro há uma cama,
e na cama uma loura ganha a vida.
Toda a aldeia descansa de noite,
toda, menos a loura que se lava de manhã.
 
 
 
cesare pavese
depois
trabalhar cansa
trad.carlos leite
cotovia
1997
 


 


21 abril 2023

julio cortázar / história verídica

 



 
     Um homem deixa cair os óculos que fazem um barulho terrível ao baterem no chão. Baixa-se aflitíssimo o homem, porque as lentes dos óculos são muito caras, mas com assombro descobre que por milagre não se partiram.
     Este homem fica contentíssimo e compreende que o acontecido é uma advertência amistosa, de maneira que vai a um oculista e compra imediatamente um estojo de couro almofadado com dupla protecção, para remediar o mal. Uma hora depois o estojo cai no chão e ao abaixar-se sem preocupações de maior descobre que os óculos se fizeram em fanicos. O homem demora um grande bocado a compreender que os desígnios da Providência são inescrutáveis e que na realidade o milagre ocorreu agora.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
material plástico
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973
 


20 abril 2023

leopoldo alas / com este sol

 
 
Com este sol que me descansa a alma
(a luz, a nitidez do céu,
esses aromas naturais
que desdenhei de há uns tempos até agora)
é fácil esquecer-me que o mal resiste
nos corações, nos olhares prudentes
dos homens cansados,
em tantos abismos das cidades,
nos dias que passam obscenos
sem se revoltarem,
tal como esses criados orientais
que, sem perder o sorriso, conspiram.
Com este sol que me descansa a alma.
 
 
 
leopoldo alas
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



19 abril 2023

josé tolentino mendonça / os incêndios

 



 
Não devias empurrar fogo tão solitário
sob os umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
 
a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma
 
não despertes o que não podes calar
 
 
 
josé tolentino mendonça
longe não sabia
presença
1997
 




18 abril 2023

jorge de sena / «quem muito viu…»

 
 
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extenso da justiça justa;
 
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si e o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
 
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
 
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontra-lo morto.
 
 
 
jorge de sena
arte de música (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




17 abril 2023

josé saramago / estrelas poucas




 
Dizer-te rosa, aurora ou água solta,
Que mais é que palavras apanhadas
No refugo das línguas e das bocas?
Os mistérios são pouco o que parece,
Ou não chegam palavras a dizê-los:
Na fundura do espaço estrelas poucas.
 
 
 
josé saramago
provavelmente alegria
caminho
1987





 

16 abril 2023

luis alberto de cuenca / sem medo nem esperança

 
 
E de repente voltas do inferno
com um fato de gala impressionante
que recorda o que Dale Arden usou
quando Ming, o cruel, foi derrocado.
Fitámo-nos ambos nos olhos como
se fosse o primeiro dia da História.
E bailámos, bochecha com bochecha,
trasladados a um mundo sem amanhã
nem ontem, ardendo numa fogueira
de plenitude, como anjos rebeldes
que acabam por levar a sua avante
perdendo a batalha, como sombras
que, na vitória do amor, sem silêncio
se dizem, sem medo nem esperança,
as palavras que nunca se disseram.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018