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Ora eu não era, não fui nunca cristão, por isso sabia
(sem palavras para dizê-lo, aos outros, ou
a mim) que a teologia, incluindo a teologia suíça,
é uma coisa carnal, antes de pensada
sentada nas vísceras, na agonia dos corpos (*),
e também que a ideia de inocência é uma ideia
perniciosa e culpada, como um quarto
completamente vazio com calendário na parede
e roupa pouco limpa pelos cantos,
é uma ideia nascida em cabeças pouco limpas
pelos cantos, uma coisa verdadeiramente sem interesse
em realidade ou fantasia. Por isso admirei
o enfado atraente de B., o bocejo invisível de B. que me lembrou
a hora do último autocarro, acabada de passar,
o último autocarro, acabado de partir,
a possibilidade de alguns quilómetros de marcha
no alcatrão silencioso, rumo aos subúrbios,
passando primeiro em frente ao museu des Augustins
e depois em frente ao palácio des Sports
onde o show de catch estaria terminando agora,
depois ao longo do canal, depois em frente até
ao alcatrão liso, deserto, dos subúrbios,
a maneira que B. tinha de encolher os ombros
só com a voz, a exactidão
indiferente de B. diante do homem suíço e de mim,
a juventude de B. afirmando a sua não inocência
diante do homem suíço e diante de mim,
o corpo inteiramente vestido de B., inteiramente escuro
e outro dentro da roupa, o avesso inteiramente outro
da roupa de B. no corpo de B., escondido
do homem suíço e escondido de mim. Talvez
a língua francesa seja mais exacta? ou todos
sejamos igualmente exactos, cada qual
na sua língua mãe? mais leves? admirava
a boca de B., as palavras francesas na boca de B.
mais francesas do que as palavras francesas na boca
do homem suíço, que era teólogo e alemão, possivelmente.
Os estrangeiros nunca falam a língua francesa
com a desejada exactidão, com a clareza
típica da língua francesa falada por uma boca
igualmente francesa, e a boca de B.
era uma boca francesa, como a roupa de B.
era uma roupa francesa, e o corpo de B.
escondido no avesso da sua roupa francesa
era um corpo francês, inteiramente
alheio ao homem suíço menos jovem
à teologia e à santidade do homem suíço ansioso
por seduzir com a inocência todos os
jovens inocentes ou não inocentes à vista
na praça oval chamada Wilson, que éramos
nós, B. e eu. Pensei então noutras circunstâncias
estaria noutra praça, noutra cidade, noutro país,
e não estaria a ouvir falar de santidade e Jesus e
a recordar Rodes e o monge enlouquecido que
distribuía imagens santas junto ao porto
mostrando os dentes aos jovens marinheiros.
Os emigrantes nunca falam perfeitamente
a língua estrangeira onde vivem, onde talvez
acabem por morrer, nunca são exactos e claros
sobretudo em língua francesa; e com o tempo
com a passagem dos anos deixam também
de ser exactos e claros na sua língua mãe,
de ser exactos e claros na realidade
como na fantasia. Assim enquanto eu
me deixava enlear no mistério da trindade
no tratado de Agostinho, e no kerygma de Barth
e em toda a vasta agonia teológica e suíça
do homem suíço menos jovem, de mala
e óculos e mapa da cidade agora deixado
aberto sobre a mesa vermelha com cinzeiro e copos
enquanto me enleava e agoniava e seguia
os gestos do homem suíço menos jovem
que agora, subitamente, se inquietava
de não ter reservado quarto em nenhum hotel,
nem conhecer ninguém, nem poder partir
para a suíça antes de amanhã, antes de
visitar o museu des Augustins e ver o mártir
varado de flechas, antes de resolver o mistério
da inocência que se deixa usar (pelos inocentes
e pelos não inocentes), antes de voltar
já sozinho e sem mapa a este café
a esta mesa estrangeira e aromática onde agora
a tentação, confusa, lhe revela
a razão e a agonia da teologia, assim enquanto
eu me enleava a agoniava ao hálito
teológico do homem suíço menos jovem,
B. inclinou a boca para o meu ouvido
E murmurou: sale pédé, que era ou seria o homem suíço,
c´est toi qu´il veut, ou outras palavras
mais exactas e precisas na sua boca francesa
sem hálito, como uma boca vestida
do avesso. B. inclinou a boca
para a minha nuca, senti o sopro da sua boca
e pensei na sua boca enquanto se inclinava
para mim. Não vi os lábios, não vi a boca
de B. que se inclinava para mim,
só imaginei a boca de B. enquanto realmente se inclinava
para mim, para o meu corpo emigrante mal vestido
com roupa emigrante, onde o corpo aparecia.
Para melhor ver B. quase fechei os olhos
para obter um efeito tri-ou tetra-dimensional,
não o fazer mas o desfazer, não a imagem mas
o sopro da boca de B. virada do avesso
que se inclinava para mim. Na recepção
do hotel o rapazola nocturno
olhou-nos com indiferença. O homem suíço
sentiu-se, subitamente, na impossibilidade de falar
francês ao rapazola nocturno e francês da recepção;
faltavam-lhe palavras, ar, indiferença. A teologia
da tentação, confusa, brotava-lhe da boca suíça
irremediavelmente, confundindo as palavras francesas
irremediavelmente estrangeiras. A tentação, confusa,
fazia-se carne diante do homem suíço confuso, incapaz
de falar ao rapazola nocturno, inteiramente
cortês e indiferente. Enquanto eu, agora,
à luz branca e demasiada da recepção, do átrio,
enquanto eu, agora, via no rosto confuso do homem suíço
o horror da tentação, a confusão e a agonia da teologia
do homem suíço incapaz de palavras francesas
irremediavelmente estrangeira diante do rapazola nocturno
da recepção nocturna, cortês e indiferente,
via no rosto confuso, desfeito, do homem suíço
o horror e a agonia da tentação, enquanto B. usava
a precisão, a exactidão das palavras francesas
para trocar opiniões com o rapazola nocturno
sobre hotéis filmes cinemas sociologia! enquanto
eu via no rosto do homem suíço as imaginações
do homem suíço no quarto de hotel 3º andar
e via, nas imaginações do homem suíço
vistas no rosto desfeito do homem suíço,
o corpo de B. a despir-se da roupa ao avesso
do corpo de B. a despir-se, a nudez da roupa de B.
junto ao meu corpo, juntos na inocência e na não inocência
do meu corpo emigrante, agora nu, juntos a usar
a não inocência, a tentação, confusa, a teologia, e
o quarto de hotel do homem suíço teólogo, a ansiedade
dos olhos do homem suíço sem óculos, sem mapa,
a usar a inocência confusa do homem suíço
para despirmos a roupa francesa e emigrante
a três, a quatro dimensões, para sabermos
quem somos, B. e eu, agora indiferentes ao homem suíço,
ao rapazola nocturno, à luz do átrio excessiva.
le tiers exclu, fantasia política
quatro caprichos
assírio & alvim
1999