27 novembro 2020

carlos saraiva pinto / atiras um livro

 
 
atiras um livro
à profundidade da água
a incerteza desagua
 
gostava de arrumar tudo
os passos que dava
um pensamento heróico de absolutos
sentado naquele alpendre
coberto de orvalho
de onde via o mar
 
reúnem-me os livros
para quebrar os pecíolos
de um quotidiano
 
mas a solidão de um irmão
não é igual à ambição de outros
 
lembra a adolescência
quando colhíamos
açucenas dos naufrágios
 
e descobríamos quando o mar
retirava às dunas um navio ferrugento.
 
enquanto guiava pelas montanhas
ao lado dava-lhe substantivos.
 
trazer até tão tarde
a luz cansa.
em breve chega o outono,
a dobra dos lençóis,
as crianças da escola,
a oração dos rostos.
 
sabes, agora,
que a vida
é um sonho desnecessário.
 
também se vive no campo.
 
os sentimentos de culpa
não nos devoram
as entranhas
 
nem vão aos funerais
os príncipes da igreja.
 
 


carlos saraiva pinto
escrever foi um engano
o correio dos navios
2001




 

Sem comentários:

Enviar um comentário