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29 fevereiro 2024

joaquim manuel magalhães / era como estar só

 




 
 
Era como estar só. Mas
estar só e feliz.
A varanda envidraçada,
o cheiro do café, um ramo
chamado pelo sono.
Sombras de sol batiam
no chão de madeira velha.
Restos de água da noite
brilhavam nos vidros
os primeiros insectos.
A maresia das aves costeiras
lanceoladas de luz.
Os olhos pousavam à espera
de te voltar a ter.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
de súbito
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990
 




30 novembro 2023

joaquim manuel magalhães / columbário

  
 
Cada ano que passa traz-me lenha.
São já muitos quando a camioneta chega
com as três ou quatro toneladas de mistura.
Assim chama às várias espécies derribadas
que chegam para cada Inverno que lhe pago.
Agora já digo ao Sr. Antunes: mais um ano.
E ele ignora-me. Que se gasta a lenha
mas é um conforto. Que é um pecado lamentar.
Com o seu santo na medalha pendurado
nem lhe digo que também por cada ano,
mais que a lenha, ardemos e ardemos.
 
Jardins abertos. Em várias ruas
ao longo do anoitecer
distinguia-se quem lançava rápidos sinais
e para um outro lado nos dispunha.
Ainda nem eram precisos bares.
Um autocarro, o metro, qualquer mesa
de um café
ensinava-nos o caminho de elevadores,
as janelas de onde se via,
depois,
a cidade adormecida.
 
Um holofote amarelo contra o quarto que me alberga,
toda a noite uma sobreluz de hotel que demolia
as tentativas de sono detrás do tempo sem blackout.
Só na segunda noite me lembrei de pendurar
edredões das sanefas e o escuro me recuperou.
Ouvia no rádio postos que não sei que transmitiam,
de vez em quando devia cair no torpor dos barbitúricos
que nenhum efeito tinham já. O ar
abafado e seco pelas tubagens que não desligavam,
as pernas entumesciam com as alergias cutâneas
debaixo de tecidos talhados com acrílicos.
 
Atira os troncos cortados contra a parede
da arrecadação, os pequenos toros caem
com um baque, tropeçam uns nos outros,
julgamos que repousam.
Mas depois vamos buscá-los para a segunda morte,
além da árvore donde os abateram
e nunca mais um pássaro lhes cantará.
Também vai às outras árvores que me serra,
algumas quase rente ao chão. Fazem
sombra de mais, começam a ficar
secas e com musgo. Parece que tudo
fica límpido quando tombam e as leva
para um sumidouro que não sei.
 
Nesse tempo o receio era tão pouco.
Bastava estar atento ao mover dos olhos,
à qualidade do sorriso, e todos éramos
a grata euforia da entrega,
a ejaculação que parecia nunca mais findar.
Sempre outro corpo mais
connosco seguiria. Jardins abertos.
Chuveiros com o mais forte abraço,
um odor diferente em cada alegria.
Talvez nos julgassem clandestinos
mas não findavam
as viagens súbitas para um novo leito.
 
A noite despeja-me na noite, semi acordado,
semi adormecido, num entre estado sem nome,
como devem estar
os cães encostados aos sem abrigo nos recantos
com os faróis contínuos do trânsito nocturno.
Levanto-me no rumor de todos os ares condicionados
atirados do hotel para o seu saguão, e lembro
a moto-serra do Sr. Antunes a desbravar o jardim fechado,
a deitar por terra o vento que batia nos ramos,
ficava tudo coalhado de um serrim pacífico
e os arbustos atrofiados pela capa sombria
logo se sentiam reerguer, alargar,
ao contrário desta noite que pesa cada vez mais.
Horas abauladas, procuro fugir-lhes no terror
das imagens nocturnas que numa outra luz
podem subir ao cérebro para despedaçá-lo.
 
Mais tarde haverá novos rebentos, demoram algum tempo,
vou-os arrancando a um por um
nos sítios onde não quero que mais nada cresça.
Outros sobem de novo cada vez mais alto, marcam
com os seus dias os meus dias
num sem retorno que também sou eu.
 
Depois nem já clandestinos.
A música dos novos bares
atenuava um pouco
a pretérita euforia das ruas.
Pareciam barcas donde se ouvia
clamores,
a corrente fulgurava entre a sombra
de cada corpo
e da margem acenavam-nos
com caminhos felizes
que podiam ser logo abandonados.
Ninguém já perseguia?
Um clarão fulminante
cruzava o céu de cada peito.
 
O terreiro agora ficou sem os ramos
piores, os de folhagem que enlameia a relva,
partiu a camioneta tão enchida
desses sítios que já tiveram ninhos
que só com muitas aselhas nos cordames
se consegue rebaixar, pequenos braços
vigorosos, resistem, não querem
enterrar-se uns pelos outros, procuram
permanecer, divago eu, como nós
ao deus inútil tanta vez pedimos.
Mas depois da nuvem de gasóleo da partida
logo me recolho e penso que na felicidade
é que julgamos inútil o que nos ajuda.
 
Mesmo assim os sonhos do passado morto
(morto, alguma vez morre tudo aquilo?)
um por um vêm e calcam com a sua verdade inteira,
persistem nos pequenos rolos de cérebro derramado,
seguem a sua astuta reconstituição, da infância
para cima, de mais tarde para baixo,
até conspurcarem todo o terreno parado do presente,
sem ameaça, só com a certeza do que não volta atrás,
do que ficou definitivamente assim.
A lenha precisa ainda de secar, repetia o Sr. Antunes,
durante um ano, são árvores de seiva matreira, todas
feitas para a falsidade, abrem um oco dentro da copa,
só na extremidade fazem bolas de verdura opaca,
fingem ser paisagem, amarelecem verdes ainda,
morrem sem dor, com uma longuíssima resignação,
tão longa que parece apenas um esquecimento.
 
Jardins abertos. Ninguém
os atravessa agora. Bares para o aturdimento
de músicas. Tudo passou a história.
Hoje há o cuidado. E se o amor
ultrapassa o prazer, restam
os testes e as suas repetições.
Só quis lembrar esta barra de fogo
apagada.
A vã duração do tempo.
 
Escrevo estes versos de memórias
alheado já.
Cada palavra mistura-se com todas.
Mas lembra-te que pensei sempre,
leitor, jardim aberto,
de algum modo em ti.
Deixa estar por uns segundos contigo
estas histórias. Dá-lhes
algum cuidado. Havia o Sr. Antunes. Pode ser
que voltes um dia a ter um tempo
para de novo te sentares com elas.
Dei-lhes o meu pensamento ameaçado
por um holofote tenaz.
Se encontrares nisso algo que te sirva
recorda-o no teu espírito
mesmo que nada se possa repetir.
 
Eu digo para mim que é esta
a utilidade da poesia,
a lembrança.
E que podes ainda, se parecem vãos
todos os meus efeitos,
largá-la de ti e haver proveito
em não seguires comigo todos os caminhos
onde ressoam passos do meu precipício.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001
 



23 abril 2023

joaquim manuel magalhães / grahams bond registered



 

Onde apareces chamo eu uma janela,
o que não sou eu, um rosto, essa palavra
com que digo o que despedaças,
uma rouca fachada,
um resto que lembro quando te vais embora,
uma coisa de prisão saindo da penumbra.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
fotografias de jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981


 


27 fevereiro 2023

joaquim manuel magalhães / a tolerância exige a reciprocidade

 



 

                     *
 
A tolerância exige a reciprocidade.
«Tenho tão presente
a grande dor» (Camões).
 
Um celerado pénis um torso
a clavícula parva de argumento,
nele o monopólio não intimava,
voga numa carapaça de trégua e linho
fluvial, em brejo de polimento.
Inculcaria turgidez a um impotente.
 
Melros em voo rasante.
A ilharga na polpa de cada dedo.
O meu rancor prega nele uma herança
de alevanto. Um adeus insensato
no índice da ternura.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
canoagem
relógio d´água
2021




26 novembro 2022

joaquim manuel magalhães / pelos caminhos da manhã

 




SEGUNDO
 
Regresso a estas marcas de neve.
As cinzas dos frutos, a poalha das larvas,
as vozes vão pelos pinheiros
são as almas, os regougos dos corpos a morrer,
os latidos do mar lavam a luz.
Os soturnos passos das ovelhas
correm pelo granizo,
o calor do corpo encosta-se, adormece,
não encontra a não ser nos sonhos
a outra boca e os outros dedos.
 
O espaço onde andava o minotauro
as ervas das flores cobriam-no,
as pedras do destino farejadas pelas nuvens,
a sombra do sol espelhada nas ribeiras,
os covis grudados às viscosas neblinas.
As fendas aterradas dos granitos
cuspiam os moscardos, as sibilinas formigas,
as carnívoras aranhas dos abismos.
 
As chamas dos corvos escureciam o dia.
Trabalhando a pedra preta para o sangue,
o aço pronto à purificação maligna
havia de descer sobre essa energia,
vibrar a torrentosa lâmpada da testa
contra o chão coalhado de vilezas.
Nas landes de tojo o touro desenhava
labirínticos rastos donde o roubaria.
 
O relâmpago das penas cavalgou-o,
a ternura esquecida, sangradas pelos céus.
Os cornos cantavam o vento o lume
que era novo o mar que fugia.
Jorravam do esperma negras ilhas
sorvidas pelo mar, as constelações
traziam ao corpo corpos soterrados,
cercavam-no as sete irmãs uivando,
varrendo a neve, amordaçando os lobos.
Voltava o touro ao pacífico plâncton
do mar donde ganhara os sortilégios.
 
A lanterna que cavalgo é outro templo.
As três mãos molhando-me no ventre
matam a matéria.
O touro é um cavalo, um monstruoso farol
renovando-me até às proporções,
até à harmonia duma praça
onde a canção de um sino me adormece.
O coração estoura, o ritmo e a unidade
fazem sete, fazem onze, fazem um.
Sou uma ave na sela deste touro,
o meu suor cai-lhe sobre um ombro,
as plêiades cercam minhas asas,
erguem-nas à luz do sol central
em torno de que gira o próprio sol.
A sétima plêiade perdida
ganha um corpo de luz e melodia.
 
Do seco labirinto dos terrenos,
dos vazios da terra voo salvo,
o infinito rio dos astros
traz as almas à incarnação.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
pelos caminhos da manhã
arcádia
1977




04 novembro 2022

joaquim manuel magalhães / adiafa

 



Esta noite dormi com os amantes
que tinham morrido. Ouvia-os
no espaço por onde ondeia o nada.
nenhum falhou no seu precipício.
 
Noites com divãs perto das janelas,
tapetes que deixavam nas costas
as suaves marcas da lã,
lamparinas que vacilavam quartos desaparecidos.
No enclave da vida adormecem-nos com jeito
em braços prontos para a corrida sem fim
com que ganhamos a mordaça do reconhecimento.
 
Visitam-me com a separação,
respiram sem som algum,
com a alma já não peregrina.
Emprestam à minha mão o sexo
que também eles um dia prenderam,
o obscuro onde a garra deflagra
para que chegue um resto desse odor
que deixavam ao partir, num fim de tarde,
na gabardina colhida depois de toda a roupa
ter sido o nosso chão.
 
Na rede transitória da paixão já sem causa
encontro a semente cujo limite
é o entorpecimento, e também a pujança
que perdeu a autoridade dos sentidos.
 
Há uma distância destruída
mesmo no lugar sobre o qual ousamos
reconhecer-nos sem nenhum sinal.
Perdem no artifício a proporção,
eles que foram sempre o meu aviso
sem nada cumprirem do que me avisavam.
E nessa lonjura de um olhar que quer perder-se
raiam na beleza dos mais justos filmes pornográficos.
 
O dízimo do mundo numa noite de outono,
o lugar aceso da lareira enferrujado,
o vazadouro agreste em que nos cerraram.
O que mata transporta estas oferendas,
esta catástrofe apaziguada,
enquanto detrás de um qualquer portão
se aproxima a máscara de cada forma,
toda por dentro da ossatura já desfeita
e nem então desaparecem.
 
Tudo o que se diz ou faz
sem o amor ter chegado ou porque partiu
é um trabalho desconjunto
pronto para a saliva do arrependimento.
A qual em massa com cada regra esquecida
nada consegue nunca vedar.
 
Tornam-se inteiramente aquilo
que certa vez me deram
com o seu toque da morte.
Trazem o amor e o pequeno amor.
E quando um amplo quarto no coração
nos renova sem qualquer travessia
afastam-se para o que não tem fim.
 
Permaneço no escuro, entrevejo
a rega rarefeita que cintila, descubro
o ritmo decepado da matéria
e no lugar que nos segura
estamos assim acompanhados
pela boa aventurança do que só existe
na mão ausente em despedida.
 
Não podia nem maior ser cada avanço
e contudo o resto do corpo inebriado
esqueceu-se dos caminhos, escuta
amortalhada a planície incolor
e quase toca os que não mais a voltarão a ver.
As conversas vinham daí, daqueles sons deitados
onde golpeava um foco que reacendia pupilas
e as suas pernas estendiam-se no ferro
de um repouso, à sombra
das altas neves que na cerviz dormiam.
 
A força, que fez jorrar o meu mais dentro
em líquidos que nos apagam a fogueira
logo reacesa, é um cordão sem nó que prenda,
um gaveto oculto de que são estilhaço,
um contágio divagante, um aconchego bárbaro
à pouco urgente divindade da vida.
 
Quando a meio da noite me levanto
e vejo pousado o comprimido
não percebo como adormeci tão de repente.
Mas entenderei depois que na madrugada
o pavor não queria senão entender
a sabedoria fantasma das glândulas
que tanto assusta quando a alba tarda em romper;
e depois de vinda nos obriga a agir
com os lençóis pousados na cabeça
à espera da dissolução e do porvir.
 
Com tanto túmulo para visitar.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001





14 agosto 2022

joaquim manuel magalhães / dos meus versos

 
DOIS
 
Comprei-lhe requeijão durante vários dias.
No último enganou-se nos dinheiros
fez o embrulho num papel errado.
Ri-lhe o primeiro convite. Riu-se em trocos.
Continuei por entre os corredores
do resto do supermercado achando
a cada espaço vazio de caixotes
seu olhar a seguir as minhas compras.
Quando estava prestes a curvar-se
para pesar um frango, uma morcela,
coelhos bravos, queijos ou fiambre
sorria-lhe de novo. Erguia logo
o corpo alertado turvavam-se-lhe as mãos
hesitava pelo ar refrigerado do balcão
até estender os seus produtos
à primeira mulher e às que se seguiam.
Com a cesta de metal quase já cheia
deve ter visto o adeus dado nas coisas
de comer durante muito tempo
veio depois duma qualquer desculpa
fingir que levava fardos para dentro.
Fui atrás por alguns segundos
soube que eram horas de sair
vim esperar depois de tudo pago à porta.
Os carros iam de regresso às casas,
o ar toldado de novembro avermelhava-se
a um sol que vem antes da chuva,
nos autocarros iam por detrás dos vidros
rostos que doía ver passar.
Chegou metendo um pente à algibeira,
a sacola que fora matinal ao ombro,
atravessou comigo o quadrado
da praça quando o trânsito parou.
À última luz do dia via-lhe o cabelo
com o pó do dia de trabalho.
Por agora dizia-me o seu nome
entre dentes rasgados pelas cáries
mas sorrindo tanto sob a pele escura
que eu fechava os olhos para perdurar
até tirar-lhe a camisola, as meias
trocar o meu hálito de dentífricos
pelo seu cansado de erva doutras formas
dir contra os horários as coisas do dinheiro
os outros a dizer-lhe o que devia ser.
De mim havia de ir para uma paragem
à espera do bus de que sairia
num dos caixotes de arrabalde,
o corpo satisfeito mas fendido
do prazer combinado para outro dia
que podia voltar ou não voltar a haver.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
antónio palolo
a regra do jogo
1978




08 julho 2022

joaquim manuel magalhães / um amigo

 
 
dado a crepúsculos.
À primeira falsa estrela.
Moço burguês medíocre
de olhar doce como o pez.
 
Disposto às músicas e
ao manso diálogo com mulheres.
De gestos ambíguos mas
fáceis de integrar pelos atentos.
 
Como podes suportar esses desejos
maioritários, injectado de heroína
e com o cabelo grego,
 
jovem heterossexual sensível,
 
entre cervejas, livros de poemas
e cheiros a perfumes importados?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
descrições
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981




 

06 maio 2022

joaquim manuel magalhães / um pano turvo

 
 
 
É bom acordar a meio das horas
e não estar ali só por encontro.
A névoa donde sai uma defesa amedrontada.
Abro o livro com o velador, sem sobressalto
volto a adormecer. A outra cama
com a respiração, será sonho?,
de quem dorme sem pressentimentos.
 
Só depois da noite, nos hangares,
tijolos, tubos, ferragens sem deriva
me trazem o que é a vida; a que se contrapõe,
como dantes diziam, à verdadeira.
De quase tudo salta um estilhaço,
um cerro de fornalha que naufraga
por encontros que no longe constroem
sofrimentos tirados à pressão,
com muita espuma, cuspo a casca dos tremoços.
Por aí me dirijo ao uso destinado.
 
O estendal dos prédios desfigura
a linha do frio, o monte que fora civil.
Comboios regionais meio desfeitos,
pontões de madeira, estradas de pó batido,
tudo lento, com a medida sépia do tempo,
disposto para nos dar desvalor.
Escrevo para não esquecer:
o silvo de um muro, uma chave quebrada,
tudo o que da alameda já não vejo
e quando descia do alto do adro
para dentro das tuas mãos.
 
O maior inimigo do homem
sobe do invisível e fica baixo
sem causar sinais
até ao instante em que desmoronamos.
 
O país cada vez mais longínquo.
Descobre-se, no próprio crematório
da vitória abrupta de tantos,
que nele nenhuma coisa é nossa.
Quem é, quem são, que fazem
ninguém conhece e nada nos diz.
Vias, detritos, uma gente pesada
que sai de carroçarias e regressa,
ao fim de tempo farpado, à escuridão
em que tudo nos soterra. Seu destino
a devastada aceitação dos que por votos
lhes dão o caos e a mediania.
 
A noite, quando há luz ainda,
antes das estrelas sujas,
calca vestígios de se ter partido
para o cansaço de outros lugares,
o airo forçado nas arribas com óleo sem rota,
pinhais que já não voltam a acender-se,
fábricas de chapa sanguinolenta.
 
E eu ouço um coro de sombras dos escusos
que preferem a peste, a separam em clínicas de cal
para fugirem à agressão dos murmurros que avançam
em impropérios inúteis de combater.
 
E tu, minha única companhia,
quem és? Não entendes quanto sofre
o teu mendigo, eu, enquanto o vês fechado
com o livro a meio da sua noite,
sem a sombra de terra da azinheira,
sem o loendro num jardim.
Embora de face nos agarremos
e prontos para o entorno nos encontrem
todos os que excluem.
Um homem diante de dois homens
amando-se no centro da desordem,
por esse amor tecendo melodia.
Além da nuvem transitória que ceava,
além da asfixia.
 
Tens gume ou gelo para aniquilar
quem fez deste país este país?
embora seja tarde. Embora, na realidade
e sempre,
seja primeiro a nós que matarão.
 
Outrora pude rir-me dos bairros malfazejos
porque encontrei a blindagem do teu rosto
 encostada a cada ponte que levava
de um lado do mundo ao outro lado da desolação.
 
O seu cabelo lançava uma sombra
sobre a manta lilás
e sobre a vinha.
 
 
 
joaquim manuel magalhães
alta noite em alta fraga
relógio d´água
2001




27 dezembro 2021

joaquim manuel magalhães / lareiras

 
 
Estendi o braço, apaguei a luz,
senti os seus lábios cercados de rendição.
 
Do meio de uma tristeza que não podia findar
abraçámo-nos e, no centro mais cego do pavor,
de novo nos encontrávamos. Mais perdidos,
mais perto, tão perto que chorávamos as mesmas lágrimas.
 
Vivia na rede de ruas ao alto da vila
sobre o porto. Numa casa de tinta nova
com a entrada confusa, nunca
soubemos lá ir dar.
Certas vezes tinha o rosto coberto de sangue.
Nós e a noite cortávamos de beijos a sua dor.
 
Primeiro o lume salta. Bate nos tijolos,
destrói o fumo que sobe na chaminé.
Depois os toros estalam. Abre-se o calor
para dentro da sala, a nossa pele
encontra a tua pele, esquece
a realidade: o teu pequeno emprego, o tempo
que não tens, o dédalo
sexual da situação de classe.
Por fim as chamas começam a tombar
em brasas, em cordões de cinza.
 
O seu rosto cintilava nos fins de tarde
em que seguíamos para nossa casa.
Mas quando tirava a samarra e abria,
um por um, os fechos do blusão,
ninguém se lembrava desse rosto, o acetilene
dos dedos corria-nos sobre o peito,
o mundo inteiro parecia incendiar-se.
 
Estavam envolvidos num manto,
sentados no chão de pedra, as labaredas
roubavam sombras nos seus corpos.
Nas horas de depois dos bares,
um pouco antes de amanhecer.
 
Um rapaz nos últimos anos da juventude.
Confirmava do amor a rápida colheita,
o cansaço tardio, a maldição
de me ter dado e ter perdido. E voltar a perder-te
quando for a tua vez de achares quem te receba,
quem te faça pagar-me, faca por faca,
o preço das trocas tão deserta dos outros amores.
 
Outras vezes, ao beijares os seus olhos
verás como se fecham a fugir. Dantes
temiam reabrir-se e encontrar os teus
fixos na parede, em busca doutro corpo
que não sabias quem viria a ser.
 
A testa de altura moderada,
o nariz rectilíneo, os olhos
cor dos ouriços vivos, o lábio inferior
tenso e sem sorrir e os cabelos
iluminados, abertos à solidão.
 
Vai crescendo com o dia a dia a saudade.
Os dois príncipes melancólicos
aguardam o mensageiro.
O trovador, o mar, cobre-se de segura tempestade,
canta de encontro às rochas uma exaltação.
Aprendo a viver o sofrimento da espera,
a despedida, a chegada do temível triunfo.
 
Duas braçadas de lenha dão para uma noite
de repouso e ouvimos um do outro
o silêncio de muitos anos de conflito.
Outras vezes a triaga do ciúme agita-se
ao vento peregrino das dunas. As jóinas
não tardam a reabrir e os cardos roxos,
ouve, os cães a ladrar enquanto chove
nesta primavera que não devia voltar.
 
Posso sentar-me junto de ti?
Pegar na tua mão?
 
 
 
joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985