19 janeiro 2022

marguerite yourcenar / a paisagem dos meus dias…

 
 
[…]
 
A paisagem dos meus dias parece compor-se, como as regiões montanhosas, de materiais diversos acumulados desordenadamente. Encontro aí a minha natureza, já compósita, formada em partes iguais de instinto e cultura. Aqui e ali afloram os granitos do inevitável; por toda a parte, os desmoronamentos do acaso. Esforço-me por voltar a percorrer a minha vida a fim de encontrar um plano, seguir um veio de chumbo ou de ouro, ou o escoamento de um rio subterrâneo, mas este plano inteiramente fictício não é mais que uma aparência enganosa da lembrança. De tempos a tempos julgo reconhecer uma fatalidade num encontro, num pressentimento, numa série definida de acontecimentos, ma os caminhos de mais não conduzem a parte alguma, somas excessivas não se adicionam. Distingo perfeitamente nesta diversidade, nesta desordem, a presença de uma pessoa, mas a sua forma parece quase sempre traçada pela pressão das circunstâncias; os seus traços tornam-se confusos como uma imagem reflectida na água. Não sou daqueles que dizem que as suas acções se lhes não assemelham. É preciso que elas se pareçam comigo, porque são a minha única medida e o único meio de me desenhar na memória dos homens ou mesmo na minha própria, pois que a impossibilidade de continuar a exprimir-se e a modificar-se pela acção constitui talvez a diferença entre o estado de morto e o de vivente. Mas entre mim e esses actos de que sou feito existe um hiato indefinível. E a prova é que sinto constantemente a necessidade de os pesar, de os explicar, de dar conta deles a mim mesmo. Alguns trabalhos que duraram pouco são certamente desprezíveis, mas ocupações que se prolongaram durante toda a vida não têm maior significado. Por exemplo, no momento em que escrevo isto, o facto de ter sido imperador parece-me fracamente essencial.
 
Os três quartos da minha vida escapam, aliás, pelos actos a esta definição: a soma das minhas verdades, dos meus desejos, dos meus próprios projectos mantém-se tão nebulosa e tão fugidia como um fantasma. O resto, a parte palpável, mais ou menos autenticada pelos factos, é pouco mais distinta, e a sequência dos acontecimentos tão confusa como a dos sonhos. Tenho a minha cronologia muito minha, impossível de conciliar com a que se baseia na fundação de Roma ou com a era das Olimpíadas.  Quinze anos nos exércitos duraram menos que uma manhã de Atenas; há pessoas com quem convivi toda a minha vida e que não reconhecerei nos Infernos. Os planos do espaço cavalgam também: o Egipto e o vale de Tempe ficam muito próximos e eu não estou sempre em Tíbure quando aqui me encontro. Umas vezes a minha vida parece-me vulgar a ponto de não valer a pena não só escrevê-la mas comtemplá-la um tanto longamente, sem mais importância, mesmo a meus olhos, que a de outra pessoa qualquer. Outras vezes parece-me única, e por isso mesmo sem valor, inútil por ser impossível reduzi-la à experiência do comum dos homens. Coisa alguma me explica: os meus vícios e as minhas virtudes são absolutamente insuficientes para isso; a minha felicidade fá-lo melhor, mas com intervalos, sem continuidade, e sobretudo sem causa aceitável. Mas repugna ao espírito humano aceitar-se das mãos do acaso, não ser mais que o produto passageiro de probabilidades a que nenhum deus preside, nem sobretudo ele próprio. Uma parte de cada vida, e mesmo de cada vida muito pouco digna de ser notada, passa-se à procura das razões de existir, dos pontos de partida, das origens. Foi a minha impotência para os descobrir que me fez por vezes inclinar para as explicações mágicas, procurar nos delírios do oculto o que o senso comum me não dava. Quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm nada mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros.
 
 
 
marguerite yourcenar
memórias de adriano
trad. maria lamas
ulisseia
1974




 

Sem comentários: