31 março 2016

miguel torga / agenda



Folheio a vida
Num calendário velho.
Dias riscados, como contas pagas.
Domingos de repouso,
Segundas de trabalho
Sábados de cansaço,
Sem nenhum sentido.
No abismo do nada,
O nada, apenas.
Quem sofreu nestas páginas vazias,
Tão frias,
Tão serenas?



miguel torga
diário X
1968



30 março 2016

thyago marão villela / a memória dos outros



as roupas, o silêncio

a memória dos outros, estalada e suja, nesses olhos de conhaque, nossas mãos que seguram um copo com a finura própria do vidro, desembainhando os dedos das mangas negras, desembainhando o corpo (esse tecido), resistindo à agonia, ao inquérito, ao tórax da noite; a memória dos outros, essa fugidia, essa que mora na língua – ah!; essa memória que me conta por onde estivestes – e eu não estive; por onde as ruas foram uma vez magnéticas, por onde os ténis (esses, brancos) foram despejados como areia; a memória de quando, em Janeiro, na lapa, andamos feito dois guarda-chuvas ( eu não andei, mas caí no centro de sua voz) essa memória inquieta, justa, que estala as unhas na mesa, a memória. a memória. – bruna, no último século, te juro, seremos sós, cada qual com sua roupa e seu silêncio.


thyago marão villela
euOnça
volume_dois
editora medita
2014



29 março 2016

eva christina zeller / veio o anjo



Veio o Anjo
sentou-se a meu lado
e então vi
uma das suas asas
imóvel
na orla da noite
como se não sonhasse
com o seu par


eva christina zeller
sigo a água
trad. Maria teresa dias furtado
relógio d´água
1996



28 março 2016

vicente valero / herança




A vida que nos deram nós vivemo-la.
A fundura transparente dos poços,
a sombra irrenunciável dos pinheiros,
o trânsito custoso dos animais,
o mar tão inseguro dos beijos.
A casa que deixarmos nos recorde
só no manancial dos seus costumes,
só como nós próprios recordamos
o peso milenário dos seus muros,
o cansaço do fruto e das raízes,
a lenda que herdámos dos seus símbolos.
Com que insignificância habita o homem
a pátria da cal e da memória,
o jardim calcinado dos sonhos.
A vida que nos deram nós vivemo-la.
A casa que herdamos habitamo-la.
Tal como a encontramos permaneça,
Antes que nos anuncie o mensageiro
 – ofegante e depois de ter cruzado
a névoa por entre as ilhas – a derrota,
como num drama antigo, seu esconjuro.

  

vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




27 março 2016

carlos edmundo de ory / jovem poeta



Chama as coisas com um arrepio
(chama-as contudo)
Como és voraz entre nascimento e sonho!
Depois da criança que foste jovem poeta
dormiste de novo

Penso em ti ó crisálida
do fundo da carne tumultuária
Pensa em mim agora
Via a realidade clara

Feriram-no a rosa e a lua sobretudo
na Andaluzia
Pilar Paz Pasamar
António Gala Filipe Marechal Montes Surdo

Não meus filhos mas meus pulsos finos
são tubos de música! hastes de messes!
Não são ferros que suportem
uma vida delgadíssima

O que interessa não é a vida
são as mãos o que interessa

Não chameis pelas coisas mas colhei-as
E se ardem esfriai-as
esfriai-as


carlos edmundo de ory
doze nós numa corda
poemas mudados para português
por herberto helder
assírio & Alvim
1997




26 março 2016

miguel-manso / cesariny de roupão ao piano



Lisboa Rua do Sol ao Rato
chuva

correndo na direcção do Largo
quase derrubei um velho de sobretudo
que acenava de bengala
gesto ancho
para a graça de um prédio devoluto

admirei a pintura desse
obstáculo posto entre a passagem dos elefantes
Ganecha montado num
Roedor

Mário Cesariny era Surya sob influência
de um Ganges atmosférico
ainda raspei no acontecimento ainda
olhei para trás

e quando de novo me virei
já havia
entrado num veículo desaparecido num aceno
de múltiplos braços

o Sol terá despontado por cima
o rato iluminou

mudou para tarô num anagrama fácil

o bardo
finou subiu tornou enfim ourives
como quisera o pai
porém de um metal distinto agora
corpo invisível

óleo sobre cartão

queremos vê-lo hoje entre uma horda
de anjos marujos
que jamais o deixarão ir sozinho para
casa

amando-o à varanda do tempo como
na praia nortenha da infância
enxame de pirilampos dispersos sobre a água
de um poço escuro

como se de novo a irmã pousasse
sobre a mesa o bule tornasse à cozinha
raspando as pantufas

e de roupão voltasse Mário
da janela
vertesse os dedos extraordinariamente
sobre o marfim pálido

e tocasse



miguel-manso
da cegueira dos pintores
persianas
tinta da china
2015




25 março 2016

toni montesinos gilbert / epístola à memória



Escrevi muitas cartas. Algumas parecidas
à bela suavidade das lágrimas, amplas
como a noite que nos arranca o amor e o adormece.
Outras tiveram a eternidade da paixão.
Umas poucas páginas serviram para soltar
o próprio consolo, escondê-lo num envelope branco
e deixá-lo voar, junto com o passado, esquecê-lo
por fim, pois já ficou escrito: ficou o mundo triste
pelo poderoso infinito das palavras.

Os sentimentos vão-se desfazendo atrás de cada
letra, e tem-se saudade do que a ausência apagou
já da alma séria, murcha pala paciência,
o profundo vazio, a distância, o amor
impossível (o amor tão grande que não conheceu
outra noite além da sobra que sepulta a terra).

O resto de cartas nasceu quando chovia
dentro do outro mundo: no centro do coração
que sonha converter-se em pedra. E ser memória.




toni montesinos gilbert
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



24 março 2016

elizabeth bishop / o fim de março


                                Para John Malcolm Brinnin e Bill Read: Duxbury


Estava frio e vento, certamente não um dia
para passear naquela longa praia.
Tudo estava afastado, tão longe quanto possível,
encolhido: a maré distante, o oceano retraído,
as aves marinhas isoladas ou aos pares.
O vento vindo da terra turbulento, gelado
entorpecia-nos os rostos de um dos lados:
desfazia a formação
de um voo isolado de gansos do Canadá;
e soprava para trás as imperceptíveis ondas largas,
numa névoa acerada e vertical.

O céu estava mais escuro do que a água
 – era cor de jade parecida com sebo de carneiro.
Ao longo da areia húmida, com botas de borracha, seguíamos
um trilho de grandes pegadas de cão (tão grandes
que mais pareciam pegadas de um leão). A seguir deparámos
com um fio branco e molhado que se estendia sem fim,
às voltas até à linha de água, pela água dentro
vezes sem conta. Finalmente, elas terminavam:
um emaranhado espesso e branco, do tamanho de um homem,
          à tona da água,
erguendo-se a cada onda, um fantasma encharcado,
recuando, encharcado, entregando a alma ao Criador…
Um fio de papagaio? – Mas sem papagaio.

Queria ir tão longe como a minha proto-casa-de-sonho,
A minha cripto-casa-de-sonho, aquela caixa torta
Implantada sobre estacas, de ripas verdes,
Uma espécie de casa-alcachofra, mas mais verde
(cozida com bicarbornato de sódio?),
Protegida das marés de primavera por uma paliçada
de – são travessas de caminho-de-ferro?
(Muitas coisas sobre este lugar são duvidosas.)
Gostaria d eme reformar ali e nada fazer,
ou não muito, para sempre, em dois quartos vazios:
espreitar pelos binóculos, ler livros aborrecidos,
velhos, longos, longos livros, e escrever notas inúteis,
falar para mim própria, e, nos dias de nevoeiro,
observar as gotículas caindo, carregadas de luz.
À noite, um grog à l´américaine.
Queimá-lo-ia com um fósforo de cozinha
e a encantadora e diáfana chama azul
vacilaria, em duplicado na janela.
Tem de haver um fogão; uma chaminé,
de lado, mas atada com fios,
e electricidade, possivelmente
 – pelo menos, nas traseiras um outro fio
liga frouxamente tudo aquilo
a qualquer coisa lá ao longe por detrás das dunas.
Uma luz para ler – perfeito! Mas – impossível.
E naquele dia o vento estava demasiado frio,
mesmo para ir até tão longe,
e claro a casa estava tapada com as tábuas.

No caminho de regresso os nossos rostos gelaram do outro lado.
O sol surgiu apenas por um minuto.
Apenas por um minuto, plantadas nos seus entalhes de aeia,
as pedras pesadas, húmidas e espalhadas
ficaram multicoloridas,
e todas as que estavam bastante altas lançavam longas sombras,
sombras individuais, depois recolhidas outra vez.
Podiam estar a troçar do leão,
só que agora ele estava por detrás delas
– um sol que caminhara na praia com a última maré baixa,
fazendo aquelas pegadas grandes e majestosas,
ele que talvez tivesse atirado um papagaio para fora do céus
          para brincar.




elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006



23 março 2016

herberto helder / esta noite, diz o jornal, há sangue em muitas mãos



esta noite, diz o jornal, há sangue em muitas mãos,
que mãos em que parte do mundo?
em toda a parte há sangue em quase todas as mãos?
nas mãos que matam, nas que escrevem poemas bárbaros?
e a que leis obscuras obedecem esses poemas para serem
                                                                       assim bárbaros?
será tão perigoso o modo como agora,
neste mundo,
se escrevem para leitura legal tantos poemas bárbaros para
                                                                     além da gramática,
bárbaros na intenção primeira,
há muita gente bárbara que escreve poemas,
bárbaros ou não,
há gente mínima por aí a toda a volta
que escreve ou não escreve mas lê
poemas bárbaros, há tanta gente bárbara
que torna mínimo qualquer poema
bárbaro ou não
bárbaro poema aqui escrito em tudo quanto é mundo dito
                                                                ou não dito bárbaro



herberto helder
letra aberta
porto editora
2016




22 março 2016

pedro tamen / como se na boca da trompete



Como se na boca da trompete
coloca-se a surdina sobre a vida
e a memória irrompe qual um vento
imitação de sons    de vozes    tiros
num escuro que nada mais já pode iluminar

Não há cheiro novo que resseja a planta
verdadeira    a genuína cor    o prato
a fumegar de uma sápida sopa inexistente
sopra-se na vida todo o ar que o tempo
nos pôs no peito em anos discorridos
e é cor de sombra agora o arco-íris


pedro tamen
memória indescritível
gótica
2000



21 março 2016

nuno júdice / a noite do porto



Shakespeare podia ter vivido aqui. Podia
ter dançado na noite de S. João, quando o rio
transborda para as ruas nas correntes
humanas que as inundam. Podia ter escrito
nos invernos de ausência o que a noite
ensina sobre a privação. Podia ter
ensinado, à beira do cais, que o tempo lascivo
corre como a água, levando o que não há-de
voltar e trazendo o que nunca terá nome
nem corpo. As almas, que empalidecem quando
o sol poente se reflecte nos vidros,
cantam bruscamente o verão: reflexo de um
reflexo, frutos que se deixam colher pela
memória, seres sem ser que não hão-de voltar
a nascer. Mas o que ele cantou, podia
tê-lo cantado aqui. Todos os lugares são,
afinal, lugar nenhum para quem não habita
senão a própria voz: sonho de outra margem,
cantor perdido no labirinto das pontes. Perto
da foz, sem o saber; sonhando a nascente,
como se não fosse ele próprio a única fonte.



nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



20 março 2016

fernando echevarría / da nossa própria noite se levanta



Da nossa própria noite se levanta
aquela imóvel espécie de negrura
onde tudo é possível – as galáxias,
ou pulsar nulo de galáxia alguma.
E até a expansão, a criar alta
Invisibilidade. Mas que suga,
quando o assunto for mais denso, a graça
de um maior brio de altura.
E a outra noite pela nossa canta,
não luzes de prestígio, a só penúria
que, quase instrumental, se exerce. Instaura
um dentro fora de dimensão alguma.
E é de aí que a noite se levanta
e o mundo da insistência continua.


fernando echevarría  
geórgicas
afrontamento
1998



19 março 2016

carlos poças falcão / passavam mil anos



Passavam mil anos. Seres extraordinários
saíam da terra ou nela penetravam e
desapareciam. Guerras arrasavam
o que se erguia por cima de outras guerras.
E este movimento era imóvel. As pedras
lá estavam, não mentiam, com os astros
as únicas fautoras do silêncio.
Havia qualquer coisa como o vento que erodia.
Mas passavam mil anos. Os povos contavam
pelos dedos. A morte não vinha mais depressa.


carlos poças falcão
o número perfeito
arte nenhuma (poesia 1987-2012)
opera omnia
2012




18 março 2016

philip larkin / as árvores



As folhas rebentam nas árvores
Como algo que quase se diz;
Os novos botões espreguiçam-se,
O verde é uma forma de mágoa.

Será que renascem, e nós
A envelhecer? Não, também morrem.
O truque que as faz parecer tão novas
Está escrito no grão dos anéis.

Porém os castelos inquietos
Adensam e crescem com o Maio.
Dizem: “passou, morreu o ano –
Recomecem, recomecem…”



philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004



17 março 2016

oscar wilde / libertatis sacra fames



Embora seja filho da democracia
    E a Republica seja para mim o bem
    De cada um poder ser Rei, sem que ninguém
Tenha assento sobre os pares, todavia,
Malgrado este moderno afã de Liberdade,
    Melhor é quando Um só governa, e outros seguem,
    Do que deixar que falsos oradores deneguem
Sermos livres, por sua anárquica vontade.
Não gosto, pois, daqueles cujas mãos corruptas
    Arvoram sobre a turba imensa panos rubros
    Sob cujo ignaro mando, sem justiça,
A Arte e a Honra e a Cultura se sepultam;
    Só resta a Traição, com gládio de cobiça,
    E o Assassino com seus pés de sangue mudos.


oscar wilde
poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2005



16 março 2016

paul auster / desaparecimentos



2

È uma parede. E a parede é a morte

Ilegível
Rascunho de mal-estar, na imagem

e pós-imagem da vida –

e os muitos que aqui estão
embora nunca nascidos,
e aqueles que falariam

para se darem à luz.

Ele saberá o falar deste lugar.
E saberá manter a boca fechada.

Porque é isto a nostalgia: um homem.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



15 março 2016

lawrence ferlinghetti / autobiografia



A vida que levo é muto sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a admirar os campeões
do Grupo Dante de Bilhar
e os viciados dos matraquilhos.
A vida que levo é muito sossegada
na zona leste da Broadway.
Sou americano.
Sempre fui um rapaz tipicamente americano.
Lia o Magazine dos Rapazes Americanos
e tornei-me escuteiro
nos subúrbios.
Sentia-me o Tom Sawyer
ao pescar caranguejos do rio na Bronx
mas a pensar no Mississípi.
Tive uma luva de baseball
e uma bicicleta American Flyer.
Distribuí o Woman´s Home Companion
às cinco da tarde
e o Herald Tribune
às cinco da manhã.
Ainda julgo estar a ouvir o barulho do jornal ao cair
nos terraços para onde eu o atirava.
Tive uma infância infeliz.
Vi Lindberg aterrar.
Olhei com saudade para o meu torrão natal
mas não vi nenhum anjo, ao contrário do Thomas Wolfe.
Fui apanhado a roubar lápis
no supermercado
no mesmo mês em que fui promovido a Escuteiro-Chefe.
Derrubei árvores para o Departamento da Agricultura
e sentei-me nelas.
Desembarquei na Normandia
num barco a remos que se voltou.
Vi os exércitos tão cultos
na praia de Dover.
Vi pilotos egípcios em nuvens púrpura
lojistas a correrem os taipais
ao meio-dia
salada de batatas e flores
em piqueniques anarquistas.
Estou a ler «Lorna Doone»
e uma biografia do João Máximo
que era o terror dos capitães de indústria
e tinha sempre uma bomba na gaveta da secretária.
Vi os homens da limpeza desfilarem
no dia comemorativo de Colombo
atrás das fanfarras ruidosas
e malcheirosas.
Há que tempos que não vou visitar os Claustros
ou as Tulherias
mas continuo a fazer tenção
de lá ir.
Vi os homens da limpeza desfilarem
debaixo da neve que caía.
Comi cachorros quentes nas feiras.
Ouvi o Discurso de Gettysburg
e os discursos de Ginsberg.
Gosto disto aqui
e não voltarei
para donde vim.
Também eu, como o Ginsberg,
viajei em vagões-jota vagões-jota vagões-jota.
Também eu viajei no meio de desconhecidos.
Estive na Ásia.
Estive com Noé na Arca.
Quando Roma foi construída
estava eu na Índia.
Estive na Manjedoura
com o Burro.
Da Montanha Branca
ao sul de São Francisco
vi o Distribuidor Eterno
e no Luna Parque vi a Mulher que Ri
na Barraca das Gargalhadas
sob uma bátega de água
mas sempre a rir.
Tenho ouvido à noite os ruídos
das grandes pândegas.
Tenho vagueado tão solitário
como as solitárias multidões.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias à porta do café do Mike
a ver o mundo passar por mim
em tão variados sapatos.
Empreendi uma vez
uma viagem a pé à volta do mundo
mas quando dei  por mim estava em Brooklyn.
Não consegui fugir à Ponte de Brooklyn.
Em silêncio maquinei
exílio e engenho.
Voei demasiado perto do sol
e as minhas asas de cera derreteram-se.
Ando à procura do meu Velho
que nunca conheci.
Ando à procura do Chefe Perdido
com quem voei.
Os jovens deviam ser exploradores.
O lar é o lugar donde se parte.
Mas a minha Mãe nunca me preveniu
de que havia cenas como esta.
Cansado do útero materno
descanso.
Tenho viajado.
Visitei a cidade dos Fantasmas.
Conheço a maçada das massas.
Ouvi chorar o Kid Ory.
Ouvi um trombone a pregar.
Ouvi Debussy
filtrado pelo meu lençol.
Dormi numa centena de ilhas
onde os livros eram árvores.
Ouvi pássaros
cujo chilreio parecia o dobrar dos sinos.
Usei calças de flanela
e passeei-me pela praia do inferno.
Vivi numa centena de cidades
onde as árvores eram livros.
Que metropolitanos que táxis que cafés!
Que mulheres de seios cegos
e membros perdidos no meio de arranha-céus!
Nas encruzilhadas
vi estátuas dos heróis.
Danton em lágrimas na entrada de um metropolitano
Colombo em Barcelona
a apontar nas Ramblas para o Ocidente
na direcção do American Express
Lincoln no seu trono de pedra
E um enorme Rosto de Pedra
no Dacota do Norte.
Bem sei que o Colombo
não inventou a América.
Ouvi uma centena de Ezra Pounds domesticados.
Deviam ser todos libertados.
Já passou imenso tempo desde que fui guardador de rebanhos.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a ler os anúncios classificados.
Li de ponta a ponta
as Selecções do Reader´s Digest
e notei a perfeita identificação
entre os Estados Unidos e a Terra Prometida
onde todas as moedas têm a inscrição
«Em Deus Confiamos»
mas as notas de dólar não a têm
porque elas próprias já são Deus.
Todos os dias leio os anúncios da secção «Precisa-se»
à procura de uma pedra uma folha
uma porta jamais encontrada.
Nas Páginas Amarelas
ouço a América a cantar.
Ninguém diria
que a alma passa crises.
Todos os dias leio os anúncios
e noto a ausência da humanidade
nessa triste pletora de caracteres de imprensa.
Vejo que esvaziaram o Lago de Walden
para no sue lugar construírem um parque de diversões.
Vejo que estão a obrigar o Melville
a comer a sua própria baleia.
Vejo que vem aí uma nova guerra
mas quando ela vier não estarei eu cá para tomar parte.
Li os desígnios do destino
escritos nas paredes do telheiro.
Fui eu quem ajudou o Kilroy a escrevê-los.
Marchei pela Quinta Avenida acima
tocando clarim num pelotão cerrado
mas apressei-me a voltar para o Casbah
à procura do meu cão.
Noto que há uma certa semelhança
entre os cães e eu.
Os cães são os verdadeiros observadores
dos altos e baixos
da terra de Molloy.
Calcorreei becos e vielas
Estreitas de mais para Chryslers.
Vi uma centena de carroças do leite sem cavalos
num lote de terreno devoluto em Astoria.
Tenho ouvido o solo do ferro-velho.
Tenho percorrido as auto-estradas
e acreditado nas promessas dos cartazes
Atravessado as planícies de Jersey
e visto as Cidades Planas
E sulcado as terras ermas de Westchester
cruzando-me com bandos errantes de nativos
em station wagons.
Tenho-os visto.
Eu sou o Homem.
Estive lá.
Sofri
um tanto ou quanto.
Sou Americano.
Tenho passaporte.
Mas não sofri em público.
E sou novo de mais para morrer.
Sou um homem que se fez a si-próprio.
E tenho projectos para o futuro.
Estou na bicha
para um bom emprego.
Talvez me mude
para Detroit.
Ando a vender gravatas, mas isso
não passa de um trabalho temporário.
Sou um tipo às direitas.
Sou um livro aberto
para o meu patrão.
Sou um mistério impenetrável
para os meus amigos mais íntimos.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a contemplar o umbigo.
Sou uma parte
da longa loucura deste corpo.
Tenho vagueado em vários bosques nocturnos.
Tenho-me amparado em portais embriagados.
Tenho escrito contos despenteados
sem qualquer pontuação.
Eu sou o Homem.
Sofri
um tanto ou quanto.
Sentei-me em cadeiras de cansaço.
Sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina
onde os poetas correm.
Inventei o alfabeto
depois de observar o voo das gruas
que fazem letras com as pernas.
Sou um lago numa planície.
Sou uma palavra
numa árvore.
Sou uma colina de poesia.
Sou uma operação de «comandos»
na zona do inarticulado
como o Elliot.
Sonhei
que os dentes todos me caíam
mas a minha língua sobrevivia
para contar como foi.
Porque sou um silêncio
poético.
Sou um banco de canções.
Sou uma pianola mecânica
num casino abandonado
numa esplanada à beira-mar
num nevoeiro espesso
mas sempre a tocar.
Noto que há uma certa semelhança
entre a Mulher que Ri
e eu.
Tenho ouvido o som do Verão
na chuva.
Tenho visto raparigas nas faixas de paragem
vítimas de complicadas sensações.
Percebo as suas hesitações.
Sou um colhedor de frutos.
Tenho visto como os beijos
têm consequências de euforia.
Tenho-me arriscado
a ficar encantado.
Vi a Virgem
numa macieira em Chartres
e Santa Joana a arder
na Bela Union.
Tenho visto girafas em selvas e ginásios
com os pescoços como o amor
entrelaçados nas circunstâncias de ferro forjado
deste mundo.
Tenho visto a Venus Afrodite
sem braços no corredor cheio
de correntes de ar.
Ouvi uma sereia a cantar
no número um da Quinta Avenida.
Vi a Deusa Branca a dançar
na Rue des Beaux Arts
no dia Catorze de Julho
e a Bela Dama sem Mercê
a tirar macacos do nariz no Chumley´s.
Ela não falava inglês.
Tinha cabelo amarelo
e voz rouca
e não se ouvia o canto de nenhuma ave.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a observar os jogadores de bilhar de bolsas
integrado naquele cenário
devorando macarroni
e li algures
o Significado da Existência
mas esqueci
exactamente onde.
Mas sou o Homem
E estarei lá.
E talvez ainda faça falar
os lábios da gente adormecida.
E talvez transforme em relva
os meus cadernos de apontamentos.
E talvez ainda escreva o meu
anónimo epitáfio
pedindo aos cavaleiros
que se não detenham.


lawrence ferlinghetti
oral messages
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972