06 julho 2011

pablo garcía baena / dia da ira

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Despe-me, já não tenho outra coisa.
Quase gelado o lábio de beijar tanta morte.
Retalha meu olhar, deixa os olhos sem lágrimas
como uma carne mísera, tépida para as moscas.
Sobre tua pedra estou, não vencido, amarrado:
fere e sob o turvo cano do sangue pereça
o impuro animal de cálido vagido,
pois ele amou a carne e seu comércio
e para ele o pranto foi carnal, como um medo
cobarde de pombas ainda implumes nas mãos
e a oração uma pétala entre os dentes manchada.
Raspa, arranca-me da língua o seu nome, se tens
no dia do rigor uns favos de doçura
e opera com teu longo bisturi de clemência
o coração, a entranha que não se fatigou
nem esqueceu no torpor das noites e do vinho
e que implacavelmente perseguias
pelas estreitas ruas da tristeza antiga.
Corta dos dedos sua teia de afagos
e deixa minhas mãos apalpar cegas e alheias
o tecido longo e frio da desilusão.
 Inerme sobre o mármore oiço o teu vento
de trompas levantadas à luz derradeira,
quando o anjo apaga a lucerna do tempo
e remove as ligaduras,
o sombrio aposento das urnas,
o buraco tão escuro, o cenotáfio…
Porque estou nu diante de ti e temo-te.
 




trad. josé bento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001
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